- Feliz 2013, Tataitá-rrrrrrrrrrr!
Em cada réveillon se repete a mesma xaropada. O cunhado que, além de chato e inconveniente, é vascaíno, teima em chamá-lo por aquele maldito apelido, carregando no "r" final, enquanto os amigos presentes ouvem calados e se fecham num silêncio eloquente, fingidamente respeitoso, mas igualmente ofensivo. Alguns ensaiam até um risinho sardônico.
Já passaram mais de 60 anos desde que Messias, o Tataitá, foi alfabetizado no Grupo Escolar Cônego Azevedo, no bairro de Aparecida. Mas o apelido que ali nasceu e que ele tanto odeia, ficou impresso em sua pele como um carimbo e gravado para sempre em sua alma, como uma tatuagem indelével. Por causa dele, já lhe passou pela cabeça, ainda que fugazmente, a ideia de dar um tiro nos cornos do cunhado. "Eu ia em cana, mas haveria no mundo um torcedor a menos do Vasco" - pensou com alegria.
Capaz de causar homicídio, o incômodo apelido saiu de dentro de uma cartilha na qual Messias Pimentel estudou, um dos tantos livros que começaram a proliferar nessa época, graças à Comissão Nacional do Livro Didático criada em 1938. Anos antes, o Manifesto dos Pioneiros da Escola Nova havia sugerido diretrizes inovadoras para a educação nacional e priorizava o ensino público, gratuito e laico. Um dos signatários do Manifesto foi Lourenço Filho, autor de Upa, Cavalinho!, livro adotado pelo Instituto Christus do Amazonas, dirigido pelo professor Orígenes Martins.
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Não importa o santo, mas o milagre. Qualquer um deles trazia textos sugestivos e incorporava narrativas indígenas, que pretendiam despertar o prazer da leitura, com ilustrações, exercícios de compreensão, estudo do vocabulário e explicações gramaticais. É dentro deste contexto que surge a história do Tataitá, origem do apelido. Quem era, afinal, esse personagem?
Sísifo tupi
Tataitá era um guerreiro destemido, que enfrentou Tupã, o dono do fogo, roubando-lhe as duas pedras com as quais, depois de atritadas, fez uma fogueira. Com isso, o povo tupi aprendeu uma nova técnica até então desconhecida, mas o guerreiro foi punido com um castigo cruel: ele tinha que transportar as águas do rio para o topo de uma montanha, usando apenas um paneiro. Porém, cada vez que erguia o paneiro mergulhado no rio, a água saía pelos buracos. Estava condenado a repetir eternamente um trabalho inútil, como o Sísifo da mitologia grega. Foi, então, que a Mãe D'água, com pena, aconselhou:
- Tataitá, vai até aquela árvore alta, dá pequenos cortes no seu tronco e recolhe o sumo leitoso que dele brotará. Com este líquido, reveste o interior do cesto.
O guerreiro seguiu o conselho ao pé da letra e constatou, maravilhado, que o líquido, coagulado, havia milagrosamente impermeabilizado o paneiro. Dessa forma, conseguiu carregar a água, se livrou do castigo e ainda por cima descobriu que a seringueira fornecia borracha. Enquanto na narrativa tupi Tataitá não deu azar, na mitologia grega Sísifo deu e ficou carregando pedra por toda a eternidade.
Diante de narrativa tão poética, surge a questão: por que Messias sente vergonha do apelido? Tataitá não é do bem? É aqui que entra a professora Adelaide Wanderley, a tia Dedé, cuja fama de alfabetizadora havia se espalhado por Manaus e adjacências. Ela só permitia que tomasse tacacá na banca da dona Alvina aquele aluno que fosse capaz de soletrar a palavra: ta-ca-cá. Dessa forma, até os paralelepípedos da Rua Xavier de Mendonça aprendiam a ler com muita facilidade só para sentirem o jambu tremelicando nos lábios.
No entanto, tal motivação não funcionou com Messias Pimentel, aluno da tia Dedé no 2° ano A, que ficou tempos sem sentir o cheiro do tucupi, porque na hora de soletrar, lia sempre ta-ca-cá-rrr. Naquela época, o exercício diário que se fazia para avaliar as habilidades dos alunos recém-alfabetizados era justamente fazê-los ler em voz alta, na sala de aula, diante de todos os colegas. Cada aluno lia e relia diariamente o mesmo texto até adquirir total fluência na leitura, quando então passava para um novo texto.
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Tucupir no tacacar
O problema não era de compreensão, Messias entendia bem o que lia. É que ele começava soletrando em silêncio, bem devagar: tê-a-tá = tá, tê-a-ta = tá, i, tê-a-tá = tá, Ta-ta-i-tá. Ficava gaguejando, meio tatibitati, um ta-ta-ta sem fim, tateando aqui, titubeando ali, em busca de um "r" invisível que nunca aparecia, até dona Adelaide exigir:
- Leia em voz alta, seu Messias.
Ele continuava gaguejando, tudo por causa do seu fascínio pelo "r". Estava absolutamente deslumbrado com a letra sem a qual não existia nem rei, nem rainha, nem presidente, nem ditador. Vivia colocando um "r" inexistente no final de palavras como Tataitá e tacacá, acreditando talvez que, dessa forma, criava um efeito sonoro, pomposo, retórico, capaz de impressionar os colegas. Quando acionado pela professora, começava a ler, enfim, em voz alta, berrando e carregando nos erres:
- Tataitá-rrrrrr!
Todas as demais salas ouviam o berro, que atravessava o muro do Grupo Escolar e ecoava pelos becos de Aparecida. A professora corrigia uma, dez, cem vezes, mas no dia seguinte recomeçava tudo de novo. Quando ela ia avaliar a compreensão do texto e perguntava quem era o personagem principal da história, a irresistível força do "r" sobrepujava as correções feitas e Messias sapecava pela milésima vez:
- Tataitá-rrrrrr!
Sua leitura era como o trabalho de Sísifo e do próprio Tataitá antes de encontrar a Iara, porque todo o esforço feito num dia, era desfeito à noite, e no dia seguinte recomeçava do zero. Era impossível que Messias não ficasse carimbado com o apelido de Tataitá-rrrrr. Numa época em que ninguém falava em bullying, mas havia muita molecagem, ele foi vítima de todo tipo de gozação. No recreio, no pátio, na sala de aula e na saída da escola, os colegas, com as duas mãos em concha na boca, gritavam:
- Tataita-rrrrrrr, vai tomarrr tacacá-rrrrrr!
Ele se defendia bem, respondendo com raiva:
- Vai tu-rrr, tomarrrrrr nukuurrr!
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Por isso, no dia 31 de dezembro, quando der meia-noite, ele odiará o cunhado que lhe dirá:
- Feliz 2013, Tataitá-rrrrrr!
É o que, já adiantando, também desejo ao leitor-rrrr.
P.S. Pretendia escrever sobre o lixo de Manaus, de Duque de Caxias e de outros municípios abandonados pelos prefeitos que terminam seus mandatos. Ou sobre o lixo do Senado, que troca Sarney por Renan, seis por meia dúzia. Lembrei-me, então do saudoso e combativo senador Fábio Lucena e acordei com o grito do Tataitá-rrrr na minha cabeça. Já conhecia a história, telefonei para minhas irmãs Gina, Helena e Dile, que foram colegas do Messias em diferentes séries e testemunharam a agonia do Tataitárrrr. Elas me deram os detalhes, eu só fiz dar uma ligeira enfeitada.Saudades do senador Fábio Lucena, que tinha algo de Tataita-rrrr, não tinha não?