CRÔNICAS

Ele passou a mão na bunda da Caetana

Em: 10 de Agosto de 2014 Visualizações: 21137
Ele passou a mão na bunda da Caetana

 

Quando eu morrer / Não quero choro nem vela... / Não quero flores / Nem coroa com espinho /

Só quero choro de flauta / Violão e cavaquinho. (Noel Rosa)

Lá no sertão da Paraíba, a morte é do sexo feminino e se chama Caetana, escreveu Ariano Suassuna:

- Aliás, o único jeito de eu aceitar essa maldita é se ela vier como uma mulher bonita e carinhosa.

Ela veio. Recentemente. Levou o próprio Ariano e outras pessoas, tudo gente fina, algumas de projeção nacional como Rubem Alves e João Ubaldo, outras amadas intensamente, embora em âmbito mais restrito, como o sábio tukano Manoel Moura e o engenheiro amazonense José Geraldo, que não resistiu e passou a mão na bunda dela, desmoralizando-a como fazem os mexicanos com La Catrina.

Foi assim: o nosso herói José Geraldo Bessa (1953-2014), conhecido como Djewry Power, nascido no Bairro de São Jorge, em Manaus, depois de quarenta dias num hospital, foi cremado no Parque da Colina, em Niterói, nesta quinta-feira, 7 de agosto, numa  festa do arromba. Teve tudo: música  profana, como Meu carro é vermelho do Tremendão, no lugar do Requiem de Mozart, carimbó, Pinduca, dona maria chegou, chegou, com a mandioca, luiz gonzaga e o último pau-de-arara e até o hino do Botafogo. Só faltou mesmo a mulata do Noel Rosa sapateando no caixão, mas a ausência foi justificada no convite à cerimônia fúnebre feito por um dos filhos, Rodrigo, que é músico:

- Aos amigos, peço que levem seus instrumentos, eu levo meu violão. Aos parentes, aviso que vou fazer o velório do jeito como ele pediu: uma festa com alegria, sem tristeza, fora do padrão, do jeitinho dele e também um pouco do meu. Infelizmente não consegui a bateria da escola de samba, como ele queria, mas acho que também eu não teria coragem, como ele certamente teria, de causar essa polêmica.

O anti-herói

Quem é, afinal, esse Djewry Power, que nunca usou espelho pra se pentear e foi capaz de organizar o seu próprio velório com uma festa que deixaria os mexicanos mortos de inveja? Teve choro - é verdade - que ninguém é de ferro, mas também muito riso, porque de vez em quando alguém lembrava histórias do nosso herói, que morreu como viveu: rindo de si mesmo e do mundo. Embora tenha escolhido uma vida curta e gloriosa como os heróis gregos, na verdade foi um anti-herói; conseguiu ser aquilo que muita gente quer ser e não pode.

Ser anti-herói não é para qualquer um. Tem que ter muito borogodó, muito carisma ou nascer de novo para ser o reverso de uma vida prosaica e ordeira, enquadrada no establishment. Ele era um palhaço transgressor, embriagado da poesia que levava para o picadeiro. Nas festas familiares, o espetáculo era ele. Quando chegava, tornava-se o centro das atenções. Não tinha pra mais ninguém. Era logo cercado pela sobrinhada, que se divertia com suas traquinagens, loucuras, sacanagens e seus palavrões que fluíam com tanta pureza e espontaneidade. São muitas as histórias.

Há anos, uma sobrinha de Manaus veio a Niterói com o noivo e numa festa familiar, apresenta-o ao tio que, de cara séria e amarrada, começa a interrogá-lo: quais suas intenções, estudos, bairro, trabalho, de que família era. Quando o rapaz, alarmado com o interrogatório, sem suspeitar da farsa, falou que sua mãe se chamava Raquel, Djewry lembrou de uma colega no curso de inglês, em Manaus, em 1970, que tinha esse nome. O noivo, feliz por estabelecer uma ponte, confirma que a mãe havia efetivamente estudado inglês nessa época.

- No ICBEU? Raquel ou Rachel? - perguntou Djwerry. 

- É, no ICBEU. Rachel. 

- Então - disse Djewry carrancudo - só tem casamento depois de um exame de DNA. Você pode ser meu filho. I fucked several times a senhora sua mãe - jurou num padrão que Alexandre Nero usa agora na novela Império.

Uma de suas diversões era aterrorizar os namorados das sobrinhas, que antes de apresentados eram advertidos sobre o humor do tio. Ainda assim, o bicho pegava. Uma delas, namoradeira, ouviu-o dizer a um ficante:

- Como é mesmo teu nome? Sicrano, Beltrano, Fulano ou Herculano?

Quando o tal do Herculano ia abrir a boca, Djewry dispensou o rapaz:

- Phoda-se, bicho. Não precisa dizer. Amanhã vai ser outro namorado e não vou perder meu tempo decorando teu nome.

No universo familiar, ele desempenhou a função de coesão, cingindo a tessitura dos laços afetivos, fazendo sempre o contraponto de negar o instituído, provocando os arrogantes e audaciosos e defendendo quem estava por baixo. Era sempre "do contra", mas com sentido.

Sobrinhos do Capitão    

O velório não surpreendeu seus amigos de Manaus, que lembram as cumplicidades na molecagem. O Tracajá - esse era seu apelido no bairro - aprontou muitas em parceria com o hoje historiador Geraldo Sá Peixoto. Na Escola Técnica Federal do Amazonas, onde era conhecido como Catatau, ele e Simão Pessoa, ex-poeteiro e cronista, em plena ditadura, infernizaram a vida do professor de educação moral e cívica, editando um jornal anarquista que pregava o amor livre e denunciava a virgindade como uma doença, conforme o próprio Simão conta no seu blog.

Com problemas vasculares e uma pancreatite, foi internado na unidade semi-intensiva do Hospital São José, em Botafogo, onde fui visitá-lo duas semanas antes de sua morte. Quando entramos, ele já entubado, disse ao enfermeiro, apontando a cunhada viúva que nos acompanhava:

- Essa daí é a "outra", que te falei. É meu caso.

Quando deu entrada no hospital, a atendente, uma morena bonita que preencheu a ficha perguntou: - estado civil? A família só verificou a resposta que ele deu na hora de fazer os trâmites para a cremação. Lá estava: solteiro. De pura gozação. Era casado e muito bem casado com Tânia Maria Andrade, numa relação amorosa duradoura, com quem teve três filhos - Rodrigo, Daniel e Geraldo Jr. e dois netos - Lara e Rodriguinho. Foi pai e avô como foi tio: divertido e carinhoso.

Quando nos via juntos, Tânia exclamava numa fingida queixa:

- Ai, meu Deus, livrai-nos dos sobrinhos do capitão!

Os sobrinhos do capitão eram dois irmãos gêmeos - Hans e Fritz - cujas histórias apareciam num gibi dos anos 1950-60, e que serviram de inspiração ao cartunista Angeli, criador da tira "Os Skrotinhos". Eles infernizavam a vida dos adultos, entre eles o Capitão - um marinheiro aposentado gordo e de barba negra e o Coronel - um bedel que perseguia os alunos que matavam aulas. Os dois meninos viviam em luta permanente contra a autoridade escolar e administrativa  e contra todo tipo de poder.   

Os dois Skrotinhos armavam juntos, em cumplicidade. Não era o caso aqui. Na verdade, o Hans de Niterói era apenas macaca de auditório do Fritz, a quem aplaudia e festejava as bravatas, marcadas pelo humor e a irreverência, que desconstrói o sagrado e questiona o estabelecido. O êxito dele no picadeiro era esse, essa era sua forma transitiva de amar. Adorava os aplausos, Vai fazer muita falta, mas será sempre o objeto de nossas memórias e a gente vai rir à bessa, lembrando de suas histórias, que a família planeja editar em livro. Cada risada sera a eterna presença dele nas cumplicidades que nos mantém ligados por algum DNA. 

Fritz se foi, mas antes, numa última gozação com a Caetana, fez um selfie todo entubado, exibindo seus "documentos". O circo ficou sem o seu palhaço. Hans virou um avião sem asa, fogueira sem brasa, queijo sem goiabada, Buchecha sem Claudinho. Hans precisa acreditar na alisada de bunda da Caetana para matar essa vontade danada de chorar de saudades.

P.S. Foto de José Geraldo feita por Larissa Motta

 

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18 Comentário(s)

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Luiz Pucú comentou:
06/01/2022
Fico aqui imaginando depois de voltar com uma gripe da Gota Serena lá do Paraíso de Lumiar o que você escreveria no meu enterro - como costumo dizer que nem eu mesmo estarei presente??
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Ciro Braga Dantas comentou:
22/08/2014
É foda quando alguém que nos faz sentir mais vivo e feliz de verdade morre; essa é a ironia da vida: essas pessoas, amadas por nós, que vão antes levam um pedaço nosso, isso vai nos matando um pouquinho também. Acredito que de repente, quem vive muito é por que não se apega tanto às pessoas...isso nem é uma regra...não sei.
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Sandra Almeida comentou:
11/08/2014
Deus abençoe a voce e sua família querido professor, pela perda de alguém tão maravilhoso e a sua metade!
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Patria Latina comentou:
11/08/2014
Entreouvido na redação do Pátria Latina Geralmente os artigos do nosso colunista amazonense de nascimento e carioca de coração, José Ribamar Bessa Freire, são publicado na editoria colunistas aqui no Pátria Latina. Mas aqui na redação do Pátria, nos divertimos tanto com as historias contadas por ele sobre as peripécias do irmão que faleceu recentemente, que resolvemos além de publicar no lugar de sempre, publicar também na grade principal do portal. É a crônica da morte retratada de uma maneira alegre e descontraída sem aquela coisa horrenda com gente vestido de preto, óculos escuros e aquela marcha fúnebre que assombra. http://www.patrialatina.com.br/editorias.php?idprog=6410bb923bcf940b7c57331f7b7db3c6&cod=14162
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Harald Pinheiro (via FB) comentou:
10/08/2014
Aproveitando para render homenagens àqueles que passaram dessa vida para melhor em tão pouco tempo, como se estivessem marcando pra tomar um chopp no Bar e unindo-se ao José Geraldo Bessa...salve Ruben Alves, Ariano Suasuna e Ubaldo Ribeiro. #escritoresdeagudasensibilidade!!!
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Ana Stanislaw comentou:
10/08/2014
Simplesmente linda, Bessa!
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Renato de Paiva Guimarães (via FB) comentou:
10/08/2014
O mestre José Bessa, para variar, emocionando com um personagem que eu gostaria muito de ter conhecido pessoalmente. Obrigado por compartilhar esta história. A Caetana deve ter gostado desta passada de mão na bunda.
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Roberta F. Andrade comentou:
10/08/2014
Como é bom ler você!! Beijo, querido Bessa e, feliz dia dos pais!!
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Ana comentou:
09/08/2014
Que bela e carinhosa homenagem. Ele vai adorar. Linda.
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Ana comentou:
09/08/2014
Que bela e carinhosa homenagem. Ele vai adorar. Linda.
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Ana comentou:
09/08/2014
Que bela e carinhosa homenagem. Ele vai adorar. Linda.
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Nelson Peixoto comentou:
09/08/2014
Linda homenagem, humorada e da saudade até para quem te lê. Brilhante palavras tecendo uma vida bem divertida e de muito carinho!
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Sergio Areal Souto comentou:
09/08/2014
Que puta homenagem ao "Bigue Gegê Power"! Lindo texto amigo Babá! Você é "Fodá"
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Lourdes Moraes (via FB) comentou:
09/08/2014
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Simara Ferreira (via FB) comentou:
09/08/2014
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Eláisa comentou:
09/08/2014
Essa festa familiar da foto foi a do seu aniversário de 60 anos: 17 de outubro de 2013.
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Dorinha Souto comentou:
09/08/2014
Bicho o caso é o seguinte: Djewry e insubstituível, Acabou o sorriso de um palhaço ! TE AMAREI ETERNAMENTE .
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Larissa comentou:
09/08/2014
Babá, emocionante! Lindo! Cada palavra! Amo demais essa família! Está difícil! A saudade é grande! Mas as suas histórias nos acalentam!!! Beijao
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