Os índios Satere-Mawé guardam, com carinho, uma borduna feita de pau-ferro, denominada Porantim. Ela tem a forma de um remo, onde estão desenhadas figuras, que contam as narrativas e os mitos de origem. É, portanto, uma espécie de ‘livro’. “É a nossa Bíblia. No Porantim está escrito como se formou o mundo, o guaraná e a mandioca” - explica o tuxaua Emilio.
Os velhos da aldeia são capazes de decifrar os desenhos que contam, entre outras, uma história ocorrida em tempos remotos. Eram dois irmãos. O mais velho, Anian’hup wató (o Mal), armado com o Porantim, vivia perseguindo o caçula, Anumar’hi (o Bem) para matá-lo. Depois de muitas peripécias, o Bem consegue tomar a borduna do seu irmãozinho malvado, rachando a cabeça dele com uma cacetada. Por isso, denominamos com esse nome – Porantim - um jornal mensal alternativo, criado em Manaus para divulgar notícias sobre o mundo indígena.
O lançamento oficial foi no 1º de maio de 1978, na livraria do nosso poeta Dori Carvalho – A Maíra - que na época era um ponto de encontro dos rebeldes da cidade. O jornal tinha três folhas mimeografadas, frente e verso, com um desenho do Porantim feito pelo músico Paulinho Kokai, a partir de foto do Nunes Pereira. Apresentava um requinte adicional: uma espécie de Caderno B, na realidade uma folha de tamanho ofício, dobrada ao meio, contendo artigo sobre educação bilíngüe, escrito por uma lingüista peruana (aliás, muito inteligente e bonita), que era professora da UFAM.
Nesse mesmo dia, os membros do comitê editorial - Paulo Suess, Renato Athias, Ademir Ramos e esse colunista - se reuniram na ‘sala de redação’ – a cozinha da residência do último – para avaliar o jornal. A satisfação era, sem dúvida, maior do que a de Samuel Wainer quando folheou o primeiro número do Última Hora.
Um panfleto
O jornal, editado pelo Conselho Indigenista Missionário (CIMI-Regional) pretendia atingir o público urbano de Manaus. Queria, inicialmente, ser um espelho, onde os manauaras pudessem observar não só os povos indígenas, mas a sua própria imagem. Logo depois, começou a circular nas aldeias indígenas do Amazonas, entre missionários, agentes de pastoral e índios alfabetizados em português.
De repente, começou a chegar à redação uma quantidade expressiva de denúncias: invasões de terras, massacres, trabalho escravo... Para acolhê-las, o Porantim, já no seu terceiro número, apresentava 18 páginas, sempre mimeografadas e em papel ofício. E ganhava um visual novo: títulos compostos com letras D.K.Dry e, através do stencil eletrônico, fotos pirateadas de alguns jornais.
A estrutura do CIMI nos forneceu uma vasta rede de correspondentes, espalhados pelas aldeias indígenas, que abasteciam o jornal com notas redigidas até em papel de embrulho, nas quais freqüentemente a informação mais importante vinha no final. O trabalho da redação era, nesses casos, ‘cozinhar’ o material recebido, complementando a apuração dos dados e dando-lhe um tratamento jornalístico adequado.
Foi exatamente o que fizemos com a notícia sobre a morte de mais de cem índios Yanomami do rio Maiá, vítimados pela malária e tuberculose. O terceiro número, com uma tiragem de 1.500 exemplares, estampou manchete na primeira página: “MAIS DE CEM INDIOS MORTOS NO RIO MAIÁ (A IMPRENSA CALOU)”. A matéria, que havia recebido um tratamento criterioso e profissional (apesar de carregada de indignação) mexeu com os brios da grande imprensa.
No dia seguinte, todos os jornais brasileiros deram a notícia, citando o Porantim, que foi chamado de ‘confrade’ pelo Estadão. A notícia perturbou a Funai. O general Ismarth, seu presidente, desmentiu, correndinho. O Porantim, também correndinho, confirmou com matéria apresentada no melhor estilo global. A notícia era aberta assim, pomposamente: “São Gabriel (do nosso correspondente). O Jornal Nacional da TV Globo tinha o Sílio Bocanera, em Londres; nós, em compensação, éramos o único jornal do mundo a ter correspondente em São Gabriel da Cachoeira, no alto Rio Negro.
O general nos desmentiu várias vezes, mas sempre foi obrigado a se retratar. No número 10 (agosto 1979) o nosso valente jornal mensal noticiava a morte de 85 índios Deni, no rio Juruá. A Funai disse que era mentira. O Porantim, então, publicou a lista com os nomes e as idades dos 85 índios mortos. A Funai colocou o rabo entre as pernas.
Um jornal
Um ano depois de fundado, o CIMI decidiu bancar o jornal com impressão em off-set, tamanho tablóide, 16 páginas, tentando uma abordagem da questão indígena em forma mais ampla. O Porantim ganhou maior credibilidade e aumentou sua tiragem para cinco mil exemplares. A rede de correspondentes e a distribuição se espalharam por todo o Brasil. Passou a ser vendido em algumas bancas das cidades do Norte, dialogando com outros periódicos alternativos como o desassombrado Varadouro, editado no Acre.
O perfil do leitor também estava mudando: a liderança indígena começou a lê-lo. Ficamos emocionados quando um Tukano, em uma assembléia indígena realizada em Manaus, anunciou que a primeira vez que ouvira falar do famigerado projeto de ‘emancipação’ do ministro Rangel Reis foi através das páginas do Porantim, lido em sua aldeia no alto Rio Negro.
Professores e alunos do Curso de Jornalismo da UFAM, entre os quais Mário Adolfo, o chargista mais talentoso do pedaço, bem como antropólogos, lingüistas, historiadores, médicos, missionários e índios trouxeram sua colaboração. O Porantim deixava de ser apenas um jornal de denúncias, para se tornar um veículo informativo e interpretativo, e tudo isso sem perder o seu caráter docemente panfletário.
Por causa disso, um bispo da Amazônia, acostumado com a linguagem de boletim paroquial, me puxou a orelha. Ele não gostou da nota que escrevi intitulada ‘Teixeirão Bobalhão’, em resposta ao então governador de Rondônia, coronel Jorge Teixeira, que havia declarado à imprensa de Manaus: “Os índios são todos uns bobalhões parasitas. Vou empurrá-los para a outra margem do rio”. Acho que fomos até comedidos, porque não mencionamos a genitora do coronel.
A memória
“Está tudo aqui?” – perguntou o papa João Paulo II ao tuxaua Terêncio, da nação Makuxi, quando dele recebeu, em mãos, uma coleção encadernada do Porantim, durante sua visita a Manaus, em julho de 1980.
Sim, estava tudo ali: “um jornal em defesa da causa indígena”, apaixonado, nervoso, entusiasmado, contraditório, demasiado panfletário para o gosto de alguns, feito artesanalmente ‘no peito e na raça’, com trabalho voluntário e militante, subvertendo algumas noções de jornalismo e brigando corpo a corpo com as mentiras oficiais.
Esse era o jornal Porantim, que dois anos depois foi para Brasília, e agora, em novembro, comemora a edição do número 300. Um remo sagrado, uma borduna, que virou panfleto, que virou jornal e se tornou a memória viva dos últimos trinta anos de luta dos povos indígenas. Será que ainda falta muito para Anumar’hi tomar a borduna do seu irmãozinho Anian’hup Wató?