Duas Justiças: uma da Casa Grande, a outra da Senzala. Há mais de três meses permanecem presos numa penitenciária dois jovens artesãos guarani, Denis Garcia Benite, 18 anos e Jeferson Tupã Vae, 21, acusados de um “furto” não consumado na aldeia Itatim, de Parati (RJ). Eles não podem tomar banho de sol ao lado de quem se apropriou de milhões de reais, entre outros Eduardo Cunha, Geddel Vieira, Queiroz das Rachadinhas e sua mulher, porque esses foram transferidos para prisão domiciliar por decisão do Poder Judiciário. Sem contar os aécios e flávios jamais encarcerados, sequer interrogados e os que, conforme indícios, desviaram recursos da saúde em plena pandemia: os Wilson do Amazonas e do Rio et caterva.
O que os dois guarani furtaram para não terem direito à prisão domiciliar? Na madrugada do 8 de abril, depois de tomarem umas e outras, os dois jovens entram no Posto de Saúde Indígena e na Escola Bilíngue Tavamirim e lá separam 8 pacotes de gaze, 2 garrafas de cloro, 5 unidade de álcool gel, saboneteira, esparadrapo, tesoura e outros objetos. Testemunha ocular do fato, Elio Karai Tupã Mirim Vae, 48 anos, interrogado pela polícia, declarou que antes de o furto se consumar, repreendeu os jovens e “que Denis não foi violento e reagiu pacificamente quando orientado pelo declarante a devolver os bens”, o que fez imediatamente. Portanto, a subtração não foi consumada.
Sherlock do Perequê
Apesar disso, treze horas depois, às 16h02, o heroico delegado titular da 167ª Delegacia de Polícia de Paraty, Marcello Russo e o garboso investigador Pedro Santos, defensores da lei, da ordem e da propriedade assinaram o auto de prisão em flagrante dos dois jovens, pois deduziram, sem qualquer prova, que eram “usuários de maconha e que provavelmente tentariam vender o material furtado para adquirir entorpecentes”. O Sherlock Russo agiu como a Polícia da Corte que, criada por D. João VI, em 1808, para prender escravos fugitivos, encarcerou, em 1831, um índio por “estar numa atitude de quem estava pensando em roubar”, conforme consta em documento do Arquivo Nacional.
O delegado conduziu o interrogatório das testemunhas, embrulhou os fatos e criou um conjunto de circunstâncias adversas para culpabilizar os acusados, sem a presença de um advogado de defesa, de um linguista ou de um antropólogo. Desconsiderou que eram indígenas e, portanto, circunscritos à legislação federal. Para espetacularizar a prisão, chamou a imprensa local e num show pirotécnico, tirou fotos e deu entrevistas, com pose de herói de Sherlock do rio Perequê-Açu.
Num país em que o ex-capitão presidente da República veta artigo da lei que garantia distribuição de água potável para indígenas, cujos rios foram poluídos pelo garimpo, o Sherlock do Perequê queria mostrar serviço. Mas sobretudo fazer campanha eleitoral. Filiado ao Republicanos (vixe, vixe), partido ligado à Igreja Universal do Reino de Deus e base governista de Bolsonaro, ele foi derrotado em eleição passada, quando se candidatou a deputado. Agora, transforma a arruaça de dois jovens num “crime” para se projetar, descumprindo Resolução do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
O Juridiquês
O Manual da Resolução 287/2019 do CNJ recomenda que no caso de prisão de pessoas indígenas, “não se pode afastar a necessidade de intérpretes nos atos processuais” mesmo no caso em que possuam conhecimento do português. Ora, no encarceramento dos dois jovens, cuja língua materna é o guarani, não foram usados intérpretes. Se o entendimento do “juridiquês” já é ininteligível para a maioria dos brasileiros, ele se torna ainda mais inacessível para indivíduos que pensam e traduzem o mundo a partir de categorias construídas na língua indígena, como é o caso de Jeferson e Denis, que nem sabem de que são acusados.
Os Guarani da aldeia Itatim usam sempre a língua materna nas relações cotidianas. Os dois Guarani aprenderam o português como segunda língua após a infância, para se comunicaram com o mundo Juruá, dos “brancos”, mas sem a fluência necessária, o que dificulta a defesa no contexto policial. Eles não contaram, em momento algum, com a assistência qualificada de advogados da Fundação Nacional do Índio que possui no Rio de Janeiro, no Museu do Índio, uma unidade da Procuradoria Federal Especializada.
A cultura jurídica guarani e todas as formas de socialização estão configuradas na sua língua. Para compreender a conduta dos dois jovens é necessário refletir sobre o modo de viver denominado de teko, que dá conta das relações internas pautadas pela ética do parentesco e pelo ideal de boa convivência e que orientam o sistema jurídico descrito pelo juiz argentino Manuel Moreira. Ele julgou muitos processos envolvendo os Guarani naquele país, experiência que o levou ao doutorado em antropologia. Sua tese “La Cultura Jurídica Guarani” demonstra a existência de instituições, que funcionam plenamente e são capazes de resolver os conflitos internos.
Direito Guarani
O direito consuetudinário guarani, não escrito no papel, mas que circula oralmente no sistema de saberes – o Arandu - parte do princípio de que os conflitos são inevitáveis em todas as sociedades e que cada uma desenvolve mecanismos para manter a ordem, a paz, a harmonia e a coesão social. Para isso, algumas sociedades criaram instituições como polícia, cadeia, tribunal, lei. Os Guarani criaram um sistema jurídico singular para solucionar disputas familiares e conflitos intra-étnicos. Trata-se não de um sistema de “justiça punitiva”, mas de “justiça de compensação”, “justiça de restituição”.
Desconhecer essas regras – escreve o juiz antropólogo Manuel Moreira –leva a erros judiciários imperdoáveis. Para ele, “a imposição arbitrária de um direito alheio é a forma mais cruel da violência simbólica”. Tal violência acontece porque advogados, juristas, legisladores e policiais desconhecem os sistemas jurídicos indígenas e, como nada sabem, acreditam que não existem. Sequer se perguntam como as sociedades indígenas julgam as infrações cometidas em seus territórios. Cursos de direito, com currículos dominados pela colonialidade, não dedicam sequer meio minuto para discutir o direito indígena e sua filosofia.
O juiz antropólogo de Oberá, Província de Missiones, Argentina, defende um diálogo entre os direitos particulares, que poderia aperfeiçoar os sistemas legais de sociedades ditas mais complexas. Embora camuflados e invisíveis, os mecanismos judiciais guarani continuam vigentes – escreve Moreira:
– “A cegueira colonial não permitiu distinguir as formas jurídicas dessas sociedades, pela incompetência cognitiva do invasor, que nos deixou essa pesada herança na forma de pensar. Admitir a existência de um sistema judicial diferente não implica necessariamente aceitá-lo como um mecanismo desejável, a não ser para a cultura que o produziu”.
Código Penal Mbya
Efetivamente, nos últimos 20 anos só ocorreu um único caso de intervenção policial na aldeia de Parati envolvendo um surto psicótico que resultou em agressão. Todos os conflitos foram resolvidos internamente, de acordo com os princípios que norteiam a relação entre indivíduos, o que começa a ser percebido pelo sistema judiciário nacional. Por iniciativa do desembargador Sérgio Verani, a EMERJ – Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro – promoveu recentemente cursos sobre os direitos indígenas para jovens juízes recém-concursados, para que magistrados tomem consciência dessas diferenças culturais e se habilitem a julgar com mais propriedade os conflitos que envolvem índios.
No caso dos dois jovens, a intervenção da Polícia e do Judiciário foi desastrosa, porque não restabeleceu a paz na comunidade e, ao contrário, aumentou a injustiça ao contrariar o “Código Penal Mbya”. Por causa de 5 unidades de álcool gel, dois jovens permanecem presos. Até quando? Se tivessem sido julgados e até mesmo condenados pela “intenção de estarem pensando em comprar maconha”, já estariam soltos em função da dosimetria da pena e porque são réus primários, com bons antecedentes e residência fixa conhecida, ao contrário do Queiroz. Como não houve julgamento, permanecem presos. Essa é a maior aberração de todas.
Ali onde a língua portuguesa tem uma única forma de possessivo, o guarani possui duas: quando o “nosso” inclui a pessoa com que estou falando, se usa nhandé, quando exclui o interlocutor, se usa oré. No início, os jesuítas que traduziram a oração do Pai Nosso, por desconhecerem isso, escolheram Oré Ruba, cujo significado exclui os Guarani do convívio com a figura de um Deus Pai. Hoje, Elio Karai Tupã Mirim Vae, ao testemunhar perante o Sherlock do rio Perequé, usaria “oré teko me'ẽ” como tradução mais apropriada para diferenciar assim os dois sistemas jurídicos: o dos Guarani e o dos Juruá.
P.S. Três antropólogos – José Carlos Levinho, Arilza de Almeida e Rafael Mendes Júnior, além do advogado Marcelo Chalréo e desse locutor que vos fala encaminharam documento no dia 16 de julho ao Defensor Público do Estado do Rio de Janeiro, Frederico de Deus Bravo Laport, solicitando medidas para a liberdade dos guarani presos arbitrariamente. Ele já solicitou ao juiz de Paraty a análise do pedido de liberdade, que será acompanhado pelo coordenador criminal da Defensoria, com atuação imediata nos Tribunais Superiores, caso não for acolhido o pleito pelo Juiz de Parati.
Obs: Ilustrações dos professores guarani, alunos de História Indígena no curso de formação de professores: Vanderson Lourenço, Gilmar Guilherme da Silva, Claudinei Ribeiro Alves e Jacira Gera Fernandes.
A indígena mexicana que ficou 12 anos em hospital psiquiátrico porque não entendiam sua língua
A história de Rita Patiño Quintero virou tema de documentário - Rita Patiño, a indígena mexicana que ficou 12 anos em hospital psiquiátrico dos EUA porque não entendiam sua língua - BBC News Brasil
Autor: Ronald Ávila-Claudio. Role, BBC News Mundo - 10 junho 2024
A polícia chegou à igreja no dia 8 de junho de 1983. A mulher, com as roupas sujas, os pés machucados e confusa, pronunciou algumas palavras que os agentes não conseguiram entender.
Ela foi interrogada em inglês, mas a comunicação não foi possível. E como ninguém sabia o que aquela desconhecida dizia, ela perdeu a liberdade durante os 12 anos seguintes.
Seu nome era Rita Patiño Quintero, uma indígena Rarámuri, originária do Estado de Chihuahua, no norte do México. Naquele dia, ela se refugiava no porão do templo metodista da cidade de Manter, no oeste do Kansas, nos Estados Unidos.
Antes da chegada das autoridades, um pastor a descobriu enquanto Rita comia ovos crus.
Acredita-se que ela chegou lá vindo diretamente de solo mexicano. Isso porque rarámuri significa “corredores ligeiros” e vem de Rará, que signigica pé, e muri, leve.
Para esse grupo étnico, a corrida tem um importante significado social e cultural.
Os rarámuri habitam as encostas da Serra Tarahumara, cuja complicada topografia os obriga a superar obstáculos, atravessar riachos e escalar montanhas.
É preciso ser rápido e ainda mais resiliente para enfrentar as condições da área em que vivem.
No Kansas, Rita pode ter enfrentado condições mais secas e frias do que nas montanhas.
Ela foi levada para uma delegacia, onde bateu em um policial que tentava limpá-la, conta o cineasta Santiago Esteinou, que em abril de 2024 lançou o documentário La Mujer de Estrellas y Montañas" ("A Mulher de Estrelas e Montanhas", em tradução livre), no qual a história dela é contada a partir de uma longa apuração em arquivos e por meio de entrevistas.
"Levaram um tradutor e ele faz um relato ridículo. Concluiu que ela devia ser indígena e que tinha vindo de algum país latino-americano. Mas mesmo não entendendo nada do que ela lhe dizia, ele comentou que as palavras de Rita não faziam sentido. Eles a levaram ao tribunal e concluíram que ela não estava em pleno domínio de sua capacidade mental, que era um perigo para si mesma, então a levaram para um hospital psiquiátrico", explica Esteinou à BBC News Mundo, o serviço em espanhol da BBC.
Rita quase não falava espanhol, sua língua materna era o rarámuri. No sistema judiciário do Kansas e na instituição para onde ela foi levada, não havia tradutores que pudessem ajudar no seu caso.
A mulher não entendia o processo legal contra ela, não sabia onde estava nem por que estava presa.
O resto da sua vida foi marcado pela exclusão, violência médica, burocracia institucional e solidão. Mas ela também era uma mulher cercada de mitos e mistérios.
Quem era Rita Patiño Quintero
Pastora de ovelhas, parteira, fitoterapeuta, artesã, lavadeira.
Rita foi e fez muitas coisas, segundo o documentário de Esteinou, do qual participam a cunhada dela, a sobrinha e vários vizinhos que a conheceram na juventude.
Mas algo que o diretor reitera sobre Rita, que nasceu em 1930, é que ela não seguiu os parâmetros da comunidade onde morava.
Originária de Piedras Verdes, posteriormente morou próximo à região de Cerocahui, em um povoado do município de Urique, no México.
De personalidade forte, que ignorava qualquer ordem, teve um companheiro e um filho.
Ela possuía um vasto rebanho de ovelhas, era "uma mulher rica nesse sentido", diz o documentarista. E também era caridosa: produzia queijo e o doava à comunidade.
Mas um dia tudo mudou e Rita logo se tornaria uma "indesejável" entre seu povo.
Os vizinhos dizem seu rebanho foi roubado e ela foi acusada de ter assassinado o marido, algo que nunca foi provado.
"Uma pessoa boa, muito boa. E toda a minha vida eu disse que ela era assim. O que aconteceu é que a trataram mal. Dizia-se que ela havia brigado com o marido e o matou", diz Procópio Mancinas, que morava perto de Rita em Urique e que participa do documentário.
"Rita Patiño não matou Jerónimo Renterías. Roubaram as cabras de Rita Patiño, roubaram seus cobertores, roubaram suas ovelhas”, acrescenta no documentário.
Na cidade também se espalhou a crença de que ela havia sido "enfeitiçada" em uma Tesguinada, festa celebrada pelos Tarahumara, às vezes em torno do trabalho, como o plantio, em que bebem uma bebida inebriante à base de milho conhecida como tesguino.
Depois desse suposto "feitiço", Rita teve problemas para se comunicar.
"Aí eu falei para o meu marido: 'Acho que a Rita está boba. Ela já não fala bem, como falava naquela época em que éramos novos.' Ela começou a falar sozinha. Isso não cura ninguém, é assim que se morre como um doido", comenta Soledad Mancinas, esposa do primo de Procópio, no filme.
A verdade é que Rita começou a vagar com seu filho. E sua comunidade começou a ficar com medo. Os vizinhos dizem que ela já não era mais bem recebida em quase nenhum lugar.
"Tinha gente que não queria ela por perto, quando ela chegava logo fechavam a porta. Aí alguns passaram a dizer que ela queria matá-los. Mas não era nada disso, ela estava com fome, queria comida", diz Procópio Mancinas .
Esteinou teoriza que, na realidade, Rita poderia ter sido uma pessoa com alguma deficiência que não era compreendida por aqueles ao seu redor.
Como consequência de tudo o que diziam sobre ela, o cineasta conta que as autoridades tomaram o filho dela, que também aparece no documentário.
Por que ela saiu do México e como chegou até o Kansas é um mistério, afirma Esteinou.
Mas não se trata de algo difícil de adivinhar, acrescentando, sobretudo ao analisar a realidade que ela vivia.
A libertação
O tribunal inicialmente ordenou que a mulher fosse internada no Hospital Psiquiátrico Estadual de Larned, também no Kansas, por três meses.
O estado de saúde dela seria novamente avaliado ao final desse período, assim como sua permanência nos Estados Unidos.
Mas o defensor público responsável pelo caso nunca compareceu perante os juízes. Ele também não teria conseguido se comunicar com ela por falta de tradutores.
Ao mesmo tempo, a equipe médica alegou desconhecer a origem da paciente, o que representava um grande problema no contato com qualquer familiar.
Os meses passaram e se transformaram em anos. Anos em que Rita não conseguia falar, sozinha, longe da sua cultura, da sua terra e sendo medicada sem diagnóstico específico devido às barreiras linguísticas.
"Ela se tornou mais uma", diz Esteinou.
"Foi a tempestade perfeita. Vejo muitas formas de discriminação e violência no caso da Rita. Muitos elementos se juntam. Ela é uma mulher indígena que fala uma língua completamente invisível, que é pobre, migrante e provavelmente com alguma deficiência", diz o diretor.
Quando foi libertada, Rita voltou a morar na Serra Tarahumara com uma sobrinha e sua família
Só dez anos depois é que a sua situação teve uma reviravolta e foi descoberta a extensão das falhas institucionais relacionadas com a sua hospitalização.
A organização Serviços de Defesa e Proteção do Kansas, hoje conhecida como Centro de Direitos das Pessoas com Deficiência do Kansas, decidiu em 1994 revisar os casos de pacientes que estavam hospitalizados havia mais de cinco anos.
Para Rita, a entidade designou a advogada Toria Mroz.
"Uma das primeiras coisas que fizemos foi consultar seus registros médicos. Logo no início da documentação, havia uma referência ao fato de que ela havia indicado que era de Chihuahua e que era indígena Tarahumara", Mroz diz no documentário.
"Isso esteve em seu prontuário médico praticamente durante todo o tempo em que ela esteve lá. Mesmo assim, 10 anos se passaram e ela ainda estava lá. Eles ficavam dizendo: 'não sabemos de onde ela é ou que idioma ela fala'", diz a advogada.
Mas não é só isso, também houve evidências de que funcionários dos consulados mexicanos em Salt Lake City, Utah e Kansas foram informados da presença de Rita no hospital por uma assistente social, mas nunca tomaram qualquer medida para retirá-la do hospital.
A equipe de advogados da organização processou o hospital e mais de 30 pessoas que faziam parte de seu quadro de funcionários. Eles pediram US$ 10 milhões (cerca de R$ 53 milhões) por danos.
O processo legal se tornou um desafio, especialmente porque Rita não pôde prestar depoimento no tribunal e porque nos Estados Unidos só havia um psiquiatra capaz de compreender Tarahumara, diz Esteinou.
A mulher recebeu alta e voltou ao México em 1995.
Santiago Esteinou afirma que na história de Rita confluem diversas formas de discriminação, como a de etnia e gênero
Mas o caso se estendeu de 1996 a 2001 e acabou sendo resolvido por meio de um acordo de indenização muito inferior ao valor original solicitado pelos advogados.
Por tudo o que ela viveu nesses 12 anos, a mulher receberia US$ 90 mil (cerca de R$ 476 mil), mas disso teria de destinar a quantia de US$ 32.641 (cerca de R$ 170 mil) à ONG que a ajudou e a seus advogados.
O resto do dinheiro, que deveria ajudar Rita a regressar ao seu país de origem, tem a sua própria história.
Morando nas montanhas e perdendo dinheiro
Rita olha para o horizonte sentada numa colina. Seu cabelo é todo branco, sua pele enrugada. Na frente só há montanhas e ao redor tudo é mato.
Esteinou retrata o contraste com o hospital em seu filme. A mulher, finalmente livre, com voz própria e na língua Rarámuri, é ouvida.
- Como você se sente, Rita?
- Me sinto bem, não fiquei doente.
- Você está feliz em morar nas montanhas?
- Estou muito feliz por estar aqui.
- Você não está triste?
- Me sinto muito bem em conviver com a natureza.
O diretor começou a filmar em 2016, mas o filme só foi concluído em 2022.
Nesse período conheceu Rita e sua sobrinha, Juanita, que cuidou dela.
E embora se sentisse confortável na sua terra natal, Esteinou testemunhou como, depois do Kansas, Rita teve de viver uma vida na pobreza, apesar da indenização determinada pela justiça americana.
Retornando às montanhas Tarahumara, Rita vivia na pobreza
"O tribunal criou uma conta e nomeou uma freira chamada Beatriz Zapata, escolhida pela organização, como administradora dos bens de Rita. Durante cerca de dois anos, começaram a entregar cerca de 300 dólares por mês e depois 6 mil dólares num único pagamento. Mas aí a freira desapareceu com o dinheiro", diz o cineasta.
Depois de vários anos, o tribunal convocou a freira, porque ela havia parado de relatar os desembolsos a Rita. Foi descoberto que a maior parte do dinheiro já havia sido gasto.
E embora um juiz tenha ordenado que ela devolvesse o dobro do que usou, a freira entregou apenas US$ 10 mil.
Foram nomeados dois novos administradores, que recebiam US$ 1.000 todos os anos pela gestão da conta de Rita. Ambos alegaram que não conseguiram descobrir o paradeiro da mulher e, depois de dez anos, o dinheiro acabou.
Durante sua estada no México, embora cantasse e dançasse, tivesse bom apetite e fosse cuidada com carinho, Rita vivia absorta, muito na própria cabeça, diz Esteinou.
Ela morreu em 2018 e recebeu uma festa de despedida em sua comunidade.
Os rarámuri acreditam que celebrar a morte ajuda o falecido a passar para o próximo plano de existência, que está em sua origem: as estrelas que iluminam as montanhas da Serra Tarahumara. ( Rita Patiño, a indígena mexicana que ficou 12 anos em hospital psiquiátrico dos EUA porque não entendiam sua língua - BBC News Brasil )