- Quais são os instrumentos mais usados pelos indígenas para tocar música?
Essa foi uma das perguntas feita por uma aluna do 3º ano do ensino fundamental do Instituto GayLussac de Niterói numa aula que dei nesta quarta-feira (2) via zoom a convite de uma amiga, a professora Andrea Ferrassoli. Lá estavam reunidas três turmas num total de 76 alunos de 8 e 9 anos, que me bombardearam com perguntas inteligentes:
- Como os índios se movimentam pela floresta sem se perder? Quando ficam doentes como se tratam? Você sabe como eles estão enfrentando a epidemia do coronavirus? Como as crianças brincam nas aldeias?
Diante dessas e de outras questões, era preciso desconstruir antes a ideia de “índio genérico”. Cada povo tem uma língua específica, brinca e trata doença de forma diferenciada e tem seus próprios instrumentos musicais. Posto que leite de vaca não mata bezerro, decidi contar às crianças o que vivi na UERJ e na UNIRIO, quando apresentei a meus alunos de pedagogia o projeto Ponte entre Povos, que contou com a participação dos Palikur, Tiriyó, Kaxuyana, Aparai e Wayana, aldeados no Amapá, além de músicos de formação erudita de Macapá e da Orquestra Sinfônica do Teatro Municipal de São Paulo.
Quem idealizou o projeto foi a cantora e musicóloga Marlui Miranda, com mais de duas décadas de pesquisa da música de vários povos indígenas. Teve o apoio do SESC-SP e do Projeto de Desenvolvimento Sustentável do Amapá (PDSA) no governo de João Alberto Capiberibe para levar ao Platô da Guiana a Orquestra de Câmara Primavera, regida pelo romeno Lucian Rogulski, primeiro violinista da Orquestra Sinfônica de SP, que tocou a serenata noturna de Mozart para os índios e depois ouviu deles o som de seus instrumentos musicais.
Etno-ópera
O projeto foi executado em etapas: primeiro produziram e gravaram três CDs: 1) o Kiyeminaki (recordação) com músicas Palikur, 2) o Tumukumaki Yoremuru com repertório dos Wayana, Tiriyó, Aparai e Kaxuyana e 3) o CD – Ponte entre Povos, que reúne músicas clássicas e composições em que os instrumentos da orquestra – violinos, flautas transversais, violas, violoncelo, trompa e outros – incorporaram cantos e instrumentos indígenas: cascos de jaboti, clarinetes de bambu, maracás de cuia, chocalhos de sementes, flautas de osso de veado e outras.
Depois, foi editado o livro Ponte entre Povos organizado por Marluí Miranda com esplêndidas fotos dos instrumentos e das performances indígenas e as letras das músicas grafadas nas línguas originais traduzidas ao português e ao francês falados na área de fronteira com a Guiana. A última etapa foi a do espetáculo da etno-ópera encenado pelos índios, em 2005, em dois grandes teatros do eixo centro-sul do Brasil como informa a antropóloga Artionka Capiberibe no artigo “Não cutuque a cultura com vara curta e o Projeto Ponte entre Povos”.
Nas minhas aulas, exibo sempre o livro com os CDs. A experiência consiste em fazer os alunos de pedagogia ouvirem, em primeiro lugar, as músicas indígenas que – como esclarece Marluí - delimitam os vários momentos do cotidiano, seja uma música de acalanto, de ninar, de cantar na rede, uma cantiga de amigo, de caça, de fazer roça, de furar a orelha, o nariz ou o beiço, ou cantigas de atrair o amor ou chorar sua perda, do contato com os brancos. Os alunos universitários, em geral, estranham. Um deles resumiu o ponto de vista da maioria:
- Desculpa, professor, apesar de toda a simpatia com os índios, isso que ouvimos não é música, parece mais um barulho bagunçado.
Ponte sonora
Passo, então, a um segundo momento em que escutamos a orquestra tocar Mozart.
- Ah, isso é música – todos concordam.
Vem em seguida a grand finale, quando os faço ouvir a pequena serenata noturna, mas desta vez enriquecida com a fusão dos sons dos instrumentos indígenas, em situações e arranjos novos, num encontro da música clássica indígena com a música clássica europeia. Aí todo mundo acha lindo aquilo que antes rejeitaram, porque agora o som do casco de jaboti, dos maracás, dos chocalhos, dos clarinetes de bambu e das flautas de osso de veado está num contexto que lhes é familiar e não soa estranho.
As gravações foram realizadas fora das aldeias, num estúdio móvel e em ambiente descontraído, no qual os dois grupos de músicos, formados por 28 não índios e 10 Palikur, estavam sentados, de frente um para o outro, ambos vestidos cerimonialmente, como esclarece Marluí Miranda. Os não indígenas haviam aprendido a tocar os instrumentos dos índios e usavam os seus violinos tocando o arco com bastante breu na ponta para imitar o som do casco do jaboti. Ela diz que há algo de comum entre um violino e um casco de tracajá: ambos soam por fricção, o violino usa o breu e o purupuru ruweny a cera de abelha.
A experiência mostra que as músicas indígenas seguem regras, às vezes de estrutura complexa, para compreendê-las – conclui Marlui Miranda - é preciso abrir os ouvidos a esta “paisagem sonora”. Para Danilo Miranda, diretor regional do SESC-SP, “a preservação do acervo cultural indígena é uma necessidade nacional, embora padeça de grande indiferença e sofra severas ameaças por parte de determinados segmentos sociais que insistem na intolerância e na desatenção ao bem-comum [...] esse encanto, essa invocação sonora não pode desaparecer sob pena de tornarmos o Brasil e a América mais sentimentalmente triste e espiritualmente pobres”.
O belo não pressentido
No texto de apresentação do projeto, o então governador João Capiberibe e a deputada Janete Capiberibe destacam que “o melhor que se podia fazer pela sociedade era estabelecer o diálogo de saberes entre as comunidades não-índias e os povos indígenas”, numa ponte de mão dupla com a troca de musicalidades diferentes “que valoriza aquilo que por muito tempo foi deixado de lado, mas que, entretanto, carrega o belo não pressentido”.
Nas aulas dadas nas duas universidades, levo os CDs. Mas para as crianças, através do zoom, paguei o mico de entoar a serenata de Mozart, da mesma forma que no dia seguinte repeti no evento do Gedaicast em mesa compartilhada com Márcia Kambeba e Daniel Munduruku. O GEDAI – Grupo de Estudos Mediações e Discurso na Amazônia – é coordenado pela doutora Ivânia Neves, professora do Instituto de Letras e Comunicação da Universidade Federal do Pará, com quem participo do projeto “Literaturas Indígenas na Pan-Amazônia”.
E se derem brecha, nesse domingo (6), às 17 horas, voltarei a pagar mico, cantando e contando a mesma história no 5º Encontro dos Estados Gerais da Cultura organizado pelo cineasta Silvio Tendler. Afinal, a gente vaive de laive em laive. E como salienta a antropóloga Lux Vida, “ultrapassar fronteiras sonoras supostamente intransponíveis” evidencia que a música consegue unir a todos enquanto habitantes do mesmo universo
P.S.1 Referências: 1) Marluí Miranda. Ponte entre Povos. São Paulo. SESC. 2005.(o livro traz com ele os três CDs) 2) Manuela Carneiro da Cunha e Pedro Cesarino (orgs): Políticas Culturais e Povos Indígenas. São Paulo. Cultura Acadêmica. 2014 (especialmente o artigo citado acima de Artionka Capiberibe.
P.S, 2 - A palestra organizada pelos Estados Gerais da Cultura sobre "o lugar dos povos indígenas nas politicas culturais do Brasil" parece que incomodou. Hordas bolsonaristas, que parecem incapazes de discutir e argumentar, invadiram a sala do zoom, aos berros, projetaram fotos de Bolsonaro com arma na mão, fotos de Regina Duarte e gritavam "mito mito mito". Nada disseram sobre as rachadinhas, nem por que o Queiroz depositou R$ 89 mil na conta de Michelle Bolsonaro e silenciaram também sobre a loja de chocolate de Flávio Bolsonaro. A palestra foi adiada para o início de outubro, mas naquele momento saímos da sala do zoom para o canal da ABI no you tube, onde fiz um breve resumo da palestra, tendo antes e depois ouvidos canções de Sabah Moraes. https://www.youtube.com/watch?v=XQB10d_u8Q0
Obs. Menina, nem te conto, pois não é que o livro “Cascudinho – o Peixe contador de histórias”, (Editora do Brasil) ilustrado por Luciana Grether e escrito por esse locutor que vos fala, foi exibido domingo passado no programa do Faustão?