Pouco se sabia sobre o Jaú. Diziam que a mãe dele, uma tacacazeira, havia morrido de colapso. Naquela época, ainda se morria de colapso. Ou derrame. Diziam que, em vida, ela alimentava o filho diariamente com ovos de tracajá. Mas ele nunca confirmou. Não podia confirmar nem desmentir. Simplesmente porque vivia mergulhado no silêncio. Órfão, desde pequeno, acabou virando personagem de rua. Nos anos 1960, perambulava pelas vias públicas de Manaus, com frequentes incursões pelo bairro de Aparecida. Maltrapilho, sujo, faminto, comia as sobras que lhe davam.
Quando despontava na Bandeira Branca, carregando mangas colhidas nas mangueiras da Dez de Julho, estava sempre sorridente, exibindo dentões salientes, com ausência de dois deles na ‘comissão de frente’. Algumas pessoas até que eram solidárias, mas a molecada não raro reagia de forma cruel e agressiva, apedrejando-o. Ele se defendia emitindo gritos desconexos: uh! uh! uh!.
- O Jaú é doido – concluíam.
Isso era o que todo mundo pensava: doido! Doido ou débil mental. Às vezes, bicho-papão. Mães ameaçavam os filhos:
- Se não tomar a sopa, eu chamo o Jaú. Ele vai te pegar.
Mas o Jaú dava mostras de inteligência e de sensibilidade, apesar de nunca ter colocado os pés numa escola. Não aprendeu a ler e escrever, nunca namorou, jamais ouviu a voz de Anísio Silva cantando na Rádio Baré: “Quero beijar-te as mãos, minha querida, senta junto de mim, vem, por favor”. Acontece simplesmente que Jaú era surdo e, portanto mudo, e não havia escola para ele, não havia lugar para ele na cidade. É que Manaus também era surda e cega, não ouvia e nem via os jaús que nela moravam.
Num levantamento realizado pelo doutor André Vidal de Araújo, que instalou o Juizado de Menores em Manaus, em outubro de 1935, de cada cem menores que passaram por aquela instituição, seis eram surdos-mudos. Por isso, o doutor André, um sujeito pai d´égua, pioneiro de tudo o que existe de bom no Amazonas, propôs, já em 1940, que fosse criada no Instituto Melo Matos uma seção escolar destinada às crianças surdas-mudas. A cidade surda não ouviu o doutor André. Crianças, como o Jaú, continuaram sendo excluídas da escola e escorraçadas do convívio social.
Instituto Smaldone
No Brasil, segundo a Organização Mundial da Saúde, existem hoje 13 milhões de pessoas com algum tipo de deficiência auditiva, das quais mais de 2.5 milhões são surdos que nem o Jaú. Essa e outras situações foram discutidas na ONU, que aprovou a Convenção sobre Direitos das Pessoas com Deficiência, consolidando uma política de inclusão, já existente em muitos países. Dessa forma, as portas de escolas especializadas foram se abrindo para uma expressiva quantidade de alunos com esse problema.
Segundo dados do Censo Escolar de 2003 realizado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep/MEC), 56.024 deficientes auditivos com menos de 17 anos de idade, estavam matriculados na educação básica. Já nas universidades, existiam apenas 300 alunos com surdez e isso porque são poucas ainda as instituições de ensino superior que contam com intérpretes de Libras – a Língua Brasileira de Sinais. Quando a língua portuguesa oral é a única forma de explicação das matérias nas escolas, os surdos não podem mostrar sua inteligência.
Daí a necessidade de aulas bilíngues, com tradução do português para Libras. Em Manaus, essa política de inclusão começou a ser acionada em setembro de 1983, com uma carta enviada por um grupo de pais com filhos surdos à Madre Ângela Casciara, pedindo que as Irmãs Salesianas dos Sagrados Corações dessem início ao trabalho educacional com crianças e jovens surdos, uma vez que na capital amazonense não havia sequer uma escola capaz de recebê-los.
Duas freiras italianas viajaram, então, a Manaus, para conhecerem a realidade local. Chegaram em janeiro de 1984 e, com o apoio da Arquidiocese, se instalaram em uma casa no Parque Dez. Alugaram ainda um prédio dos padres capuchinhos no Centro. Lá, no dia 4 de junho, uma ex-aluna do doutor André, a secretária de Educação Freida Bittencourt, inaugurou oficialmente o Instituto Filippo Smaldone, que agora está completando vinte e cinco anos. A nova escola começou com apenas duas turmas.
Era ainda pouco. A cada ano, apareciam mais crianças. O prédio alugado ficou pequeno. As freiras decidiram, então, construir a sede própria em um terreno localizado na Avenida Tókio, doado por um empresário local. Os recursos para a construção foram levantados com doações e promoções beneficentes realizadas pelos pais, além de ajuda proveniente da Itália. Em março de 1990 foi inaugurado o novo prédio, com instalações modernas e equipamentos específicos para a escola especial para surdos.
Janelas de saberes
Numa de minhas passagens por Manaus, visitei o prédio, que conta com vários blocos: administrativo, técnico, médico-odontológico, pedagógico, refeitórios, cozinha, garagem, piscina, área de esporte e lazer e residência, além de outras dependências necessárias ao trabalho realizado por professores especializados e por outros profissionais da área médica.
Nesses 25 anos de existência, centenas e centenas de crianças e jovens passaram pelo Instituto Filippo Smaldone responsável por um milagre similar ao realizado há dois mil anos na Galiléia. Éfeta! Ele fez que os surdos ouvissem e os mudos falassem. Na próxima quinta-feira, 4 de junho, será realizada uma missa de ação de graças por esse milagre, que abriu a porta da linguagem e, com ela, as janelas de saberes.
A luta contra a discriminação de pessoas com algum tipo de deficiência teve grandes avanços. Hoje, um recurso da tecnologia digital na televisão permite integrar numa vida de normalidade uma boa parte dessa população, tradicionalmente marginalizada. Dá até para ver o Jornal Nacional, que desde 1997 introduziu esse recurso, possibilitando o telespectador de acionar uma tecla no controle remoto e, a partir daí, ver no rodapé do vídeo, sincronizado à imagem, a versão escrita gerada pela emissora de tv do que está sendo falado.
Se o Jaú tivesse esperado trinta anos para nascer, sua mãe tacacazeira podia até morrer de colapso, mas ele não seria bloqueado, escorraçado, estigmatizado e até apedrejado. Ele poderia namorar, cantar, dançar, ler, escrever, trabalhar, enfim, interagir com o mundo. Teria um lugar, com a possibilidade de desenvolver a sua capacidade intelectual, de penetrar no universo da linguagem e de exercer a sua cidadania com direitos e deveres, como os alunos e ex-alunos do Smaldone.
Quem sabe o Jaú poderia até ouvir a voz anasalada do Anísio Silva cantando: “És o maior enlevo da minha vida, és o reflorir do meu amor”. Pelo menos foi a impressão que tive quando vi uma apresentação de dança das alunas do Filippo Smaldone, que bailavam com tanta graça, sentindo a vibração da música em sua plenitude. Entre elas, a filha do Betão, da banda Blue Birds. Foi algo tão comovente, que se eu vivesse quinhentos anos, nem assim esqueceria. Só de lembrar fico arrepiadinho: passa a mão aqui no meu braço, maninha.