CRÔNICAS

Presidenciáveis e corrupção: os ratos nas aldeias Tikuna

Em: 02 de Outubro de 2022 Visualizações: 4696
Presidenciáveis e corrupção: os ratos nas aldeias Tikuna

O último debate entre os candidatos a presidente da República, na TV Globo, encerrado na madrugada desta sexta-feira (30) mostrou que o tema corrupção faz parte das “bandeiras” de gregos e baianos. Acusar adversário de corrupto, até que “cola” em setores desinformados, que ignoram o casamento indissolúvel entre a esfera estatal e a privada, responsável por desvios de recursos públicos e pela corrosão da máquina burocrática, desde Thomé de Souza, Duarte da Costa e Mem de Sá, no séc. XVI, até os dias atuais.  

Aqueles que durante a campanha eleitoral juram combatê-la, para ganhar votos dos crédulos, uma vez no poder se lambuzam. Collor, o “caçador de marajás”, em 1989 “acusou” Lula pela compra – imagine! – de um aparelho de som. Existe corrupção maior do que essa: um operário sem diploma universitário comprar um aparelho de som? Já Coiso, o “futuro presidiário”, em 2018 dizia com Heleno: “se gritar pega Centrão não fica um, meu irmão”. Deu no que deu: ambos chafurdaram na lama, um na “casa da Dinda”, o outro, em imóveis adquiridos com dinheiro vivo, orçamentos secretos, rachadinhas, pastores e suas barras de ouro.

Como combater, de fato, a aliança entre políticos venais e empresários trapaceiros, que aliciam e subornam burocratas para saquear os cofres públicos e manter o poder? Talvez possamos encontrar respostas nos livros e artigos publicados no Brasil e no exterior, escritos por Marcos Bezerra, antropólogo da Universidade Federal Fluminense (UFF), que pesquisa o assunto desde 1989. Os Tikuna, no Alto Solimões, também ensinam como nos proteger de tal praga e dos falsos moralistas, paladinos dos discursos anticorrupção.

O Rei da Vela

O debate ganharia outro contorno, se algum dos presidenciáveis ou membros de suas equipes tivessem lido os textos de Marcos Bezerra. Entre outras conclusões, ele aponta para o fato de que a corrupção não é fruto somente da conduta desviante de pessoas ou da ação de quadrilhas como sugerem as interpretações moralistas. A corrupção, diz o antropólogo, é filha das instituições e dos mecanismos sociais: o parentesco, o nepotismo, o compadrismo, a troca de favores, o clientelismo e a impunidade.

Trata-se de uma estrutura, de um sistema infiltrado no tecido social, que extrapola o espaço público. Por isso, prender corruptos sem desmantelar os mecanismos do sistema equivale a enxugar gelo, porque os vigaristas proliferam como em “O Rei da Vela” de Oswald de Andrade, morre o agiota Abelardo I e logo é substituído por Abelardo II. Eduardo Cunha é preso, mas sua filha Danielle continua sua obra. Roberto Jefferson atrás das grades? Cristiane Brasil segue seus passos, abençoada pelo “padre” Kelmon.

- “Há continuidade entre as práticas da vida cotidiana, como subornar um guarda de trânsito para não ser multado e muitas daquelas constitutivas daquilo que se chama corrupção” – diz Marcos Bezerra, que estudou as bases sociais da prática de corrupção, vasculhou a documentação do Congresso Nacional e das CPIs e analisou o caso da Coroa Brastel aberto pelo Judiciário, em 1985, para apurar desvios de recursos públicos, além das denúncias de corrupção no governo Vargas, nas entidades evangélicas e no livro "Em nome das bases" aborda o tema do orçamento e do uso das emendas parlamentares de relator como base para a reprodução de poder político e desvios de recursos. O orçamento secreto permitiu atualizar o livro.

Mas os candidatos, no debate, não propuseram uma reflexão para mudar as condições que favorecem as práticas corruptas. Preferiram jogar sobre os ombros de Lula a culpa histórica por aquilo que ele não conseguiu impedir, apesar de haver criado em seu governo o Portal da Transparência e a Lei do Acesso à informação, que permitia saber até “a cor do papel higiênico usado no Planalto” e alguns outros mecanismos que contribuíram para detectar irregularidades, diferentemente do que aconteceu nos últimos quatro anos.

As ratazanas     

- Corrupção? No Ceará não tem disso não – disse Ciro Gomes, cujo irmão Cid Gomes levou a sogra em viagem de dez dias à Europa, que custou R$ 388.596,00 aos cofres públicos, apenas com o aluguel do jatinho. Ele e Felipe D´Ávila (Novo, vixe, vixe) se referiram à “Nova Hegemonia Moral e intelectual” do país. O “padre” Kelmon (PTB vixe vixe), com seu conto do vigário, é a imagem da dessacralização do divino, é pilantra e idiota. Deus até absolve o idiota, que só diz Coiso com Coiso, mas não perdoa o pilantra.

Já o “futuro presidiário” afogado em rachadinhas e em barras de ouro, em seu discurso delirante, também personaliza e acusa Lula de ladrão, pelo lambanças efetivamente ocorridas no governo do PT, ocultando os mecanismos criados para combater a corrupção, que foram desmantelados no atual governo, incluindo ai o sigilo de cem anos. É como se dissesse: - "Roubalheira só pode nos nossos governos". O Coiso, sem moral para isso, trata Lula como “ex-presidiário”, como se ser preso por crimes não cometidos fosse condenável, o que mereceu críticas do – esse sim padre de verdade – Júlio Lancellotti:   

- “Lula, não tenha vergonha, como eu sei que você não tem, desses indecentes que te chamam de ex-presidiário. Isso é um privilégio para você, que sofreu as injustiças que o povo sofre”. O padre demonstrou confiança de que Lula dará continuidade ao desmantelamento do sistema de corrupção.

Como mudar esse sistema? Os Tikuna acumularam experiência histórica capaz de combater, com eficácia, as ratazanas que roubavam seus alimentos. Quem conta é o médico alemão, Robert Avé-Lallemant, que visitou em julho de 1859 as aldeias do Alto Solimões, infestada por milhares e milhares de ratos, “verdadeiros bandidos, mais finos que os ratos comuns, vorazes, gulosos e insaciáveis”.

- Os Ticunas não tem armários para guardar suas minguadas provisões e penduram seus poucos mantimentos em cordões de tucum, que descem do teto, mas os ratos sobem pelas paredes e telhado e descem pelos cordões”, roubando os alimentos.

O viajante alemão conta que a luta para acabar com a roubalheira passou por três fases: prisão, pena de morte e blindagem. Primeiro armaram dezenas de ratoeiras em cada casa, não deu certo porque a armadilha só capturava ratos pequenos. As ratazanas de até 40 cm escapavam com agilidade, como quem faz delação premiada. Trocaram, então, o veneno pela borduna: focavam a cara do rato com lanterna e plaft – com uma cacetada o matavam. Acontece que para cada rato morto, um suplente assumia seu lugar.

Perceberam, então, que era mais conveniente blindar os alimentos. O médico narra a estratégia da blindagem, que deu certo:

- Os Ticunas recorreram a uma técnica simples, mas engenhosa. Fazem um furo bem no meio dum casco de tartaruga, de maneira que fique horizontal, pendurado na ponta de um cordão. Debaixo desse casco protetor penduram seus escassos víveres. Os ratos sobem até o telhado e descem até o casco de tartaruga, de onde, porém, escorregam assim que se aproximam da borda, caindo no chão, sem ter podido chegar até as provisões. O processo é extraordinariamente prático.

Oscar Niemeyer projetou o Congresso Nacional com dois cascos de tartaruga, basta usá-los corretamente para mudar o sistema.

P.S. – Alguns textos de Marcos Bezerra publicados no Brasil e no exterior:

  • Bezerra, Marcos O. ; SILVA, G. M.  Denúncias de -corrupção governamental e conflitos políticos no segundo governo Vargas (1951-1954). Revista Dilemas IFCS-UFRJ , v. 14, p. 1-26, 2021.
  • Bezerra, Marcos O. ; MOURA, G. S. . Entidades evangélicas e o combate à corrupção no Brasil (2012-2018). RELIGIÃO & SOCIEDADE , v. 41, p. 183-208, 2021.
  • BEZERRA, M. O. . Limites entre corrupção e política.. Democracia Viva , Rio de Janeiro, n.9, p. 46-53, 2000.
  • BEZERRA, M. O. . Representação Política e Acesso aos Recursos Federais.. Revista do Serviço Público (Brasília) , Brasília, v. 51, n.2, p. 73-93, 2000.
  • BEZERRA, M. O. . Corrupção. A sombra do Estado.. Democracia A Revista do Ibase , Rio de Janeiro., v. XI, n.115, p. 1-4, 1996.
  • BEZERRA, M. O. . Municípios, empresas de intermediação e verbas públicas: a intermediação e o clientelismo como negócio.. Comunicações do PPGAS/MN, Rio de Janeiro, n.5, p. 109-138, 1995.
  • BEZERRA, M. O. . Mény, Y. La corruption de la République.. Mana (Rio de Janeiro) , Rio de Janeiro, v. 1, n.1, p. 204-207, 1995.
  • BEZERRA, M. O. . Bases sociais da prática da corrupção no Brasil.. Anuário Antropológico , Rio de Janeiro/Brasília, v. 93, p. 241-289, 1994.
  • BEZERRA, M. O. . Corruzione, Politica e Emprese Appaltatrizi.. Cartografie Sociali. Rivista di Sociologia e Scienze Umane. , v. 6, p. 19-36, 2019.
  • BEZERRA, MARCOS OTAVIO . Corrupção e produção do Estado. Revista Pós-Ciências Sociais , v. 14, p. 99-130, 2017.
  • Bezerra, Marcos O. . Estado, Representação Política e Corrupção: Um Olhar Antropológico Sobre a Formação de Fronteiras Sociais. CRÍTICA E SOCIEDADE: revista de cultura política, v. 2, p. 64-80, 2012.
  • BEZERRA, M. O. . Représentation politique et ressources publiques: pratiques et conceptions de la politique dans l'univers politique brésilien.. Cahiers du Brésil Contemporain , v. 73/74, p. 69-84, 2009...
  • BEZERRA, M. O. . Em nome das 'bases'. Política, favor e dependência pessoal.. 1. ed. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1999. v. 1. 275p .
  • BEZERRA, M. O. . Corrupção. Um estudo sobre poder público e relações pessoais no Brasil.. 1. ed. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1995. v. 1. 220p .
  • BEZERRA, MARCOS OTAVIO . Combate à corrupção, conflitos políticos e a tecedura do impeachment de Dilma Rousseff. In: Rodrigo Nabuco; Maud Chirio; Diogo Cunha.. (Org.). Crise Política e Virada Conservadora no Brasil (2014-2018): O Abismo Brasileiro no Espelho do Mundo. 01ed.Curitiba: Editora Appris, 2021, v. 01, p. 15-47.
  • BEZERRA, M. O. . O 'caminho das pedras': representação política e acesso ao governo federal segundo o ponto de vista de políticos municipais.. In: Moacir Palmeira; Cesar Barreira. (Org.). Política no Brasil. Visões de Antropólogos.. 1ed.Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2006, v. , p. 177-201.

OBS. - Agradeço à mais nova doutora da Universidade do Estado do Amazonas, Darcimar Souza Rodrigues, cuja tese sobre educação infantil do povo Tikuna, orientada por Lígia Aquino no Programa de Pós-Graduação em Educação da UERJ, foi defendida nessa sexta (30) e, por vias indiretas, me fez lembrar do combate às ratazanas.                                                       

 

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13 Comentário(s)

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Susana Grillo comentou:
09/10/2022
Bessa, os povos indígenas sempre nos ensinando alternativas... o tema da corrupção é relevante - Lula criou leis e mecanismos que fortaleceram as investigações e propiciaram inúmeras prisões. Mas praticamente se tornou tema único dos debates. Corrupção não é o único problema do país. Desigualdade social, racismo, falta de oportunidades na educação e no SUS... Isso tem que ser exposto também... Abraços,
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Eneida Simões comentou:
06/10/2022
Haja cascos de tartaruga para dar conta dessa corrupção endógena em que estamos imersos.
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Valter Xeu comentou:
05/10/2022
PUBLICADO EM PATRIA LATINA https://patrialatina.com.br/presidenciaveis-e-corrupcao-os-ratos-nas-aldeias-tikuna/
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Tania Pacheco comentou:
05/10/2022
PUBLICADO EM COMBATE - RACISMO AMBIENTAL https://racismoambiental.net.br/2022/10/02/presidenciaveis-e-corrupcao-os-ratos-nas-aldeias-tikuna-por-jose-ribamar-bessa-freire/
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Fiora Serafini comentou:
05/10/2022
Muito bom tenta explicar as causas da nossa desorganização.
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Ana Silva comentou:
05/10/2022
Excelente reflexão sobre a corrupção. Os candidatos que levantam a bandeira da anticorrupção são os.mais corruptos. Estamos vivendo um momento delicado, mas digamos com fé. Fora Bozo, fora fascismo!
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urda alice klueger comentou:
04/10/2022
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Hans Alfred Trein comentou:
03/10/2022
Caro Bessa, mais uma crônica bem humorada sobre um tema tão incômodo e complexo. Que tipo de reforma política seria necessária, para que os cascos de tartaruga em Brasília pudessem servir de blindagem para o orçamento da UNIÃO? A corrupção tem uma dimensão pessoal - honestidade, caráter, firmeza do indivíduo; mas, também tem uma dimensão estrutural da cultura política, o tal "toma lá-dá cá" naturalizado, há decênios, por uma mídia que dela participa alegremente. Enquanto o problema for tratado apenas com moralidade individual, não se alterará nada na dimensão estrutural. E as ratazanas estão numa corrida, um passando a estafeta para o outro, como bem lembraste. Para, pelo menos, manter as tentativas em limites mais estreitos, é necessária a transparência. Como as ratazanas se sentiram acuadas pela transparência, resolveram vira-la contra seu criador. Mesmo assim, vamos em frente. Abraços, Hans
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Lidia V.Santos comentou:
03/10/2022
Estou lendo essa crônica dentro da linha de tempo do Felipe Fortuna, a quem agradeço o envio. Por que parei de receber suas crônicas? Eu as adoro. Quero recebe-las de novo.
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Elisa comentou:
03/10/2022
Hoje, vendo os resultados das eleições, mais que nunca a técnica dos ticuna será necessária...
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Rodrigo Martins comentou:
02/10/2022
Hoje é dia de dedetização, eu mesmo acordei bem cedo e fui o primeiro a votar e estou muito esperançoso por dias melhores. Nós brasileiros merecemos um país mais justo, democrático e com muita paz. Acho que o padre Fakelmon não vai curtir muito a resultado da eleição de hoje. E aproveito para enviar também meus parabéns para a nova doutora Darcimar Rodrigues e para o professor Bessa que chega em sua banca de doutorado de número #73. Um abraço querido professor
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Ademario Souza Ribeiro comentou:
02/10/2022
Nada simplesmente cômico. Tudo simplesmente trágico. Temos que, urgentemente, passar o Brasil à limpo - já clamava o antropólogo Darcy Ribeiro.
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Maria Amélia Alcantara comentou:
01/10/2022
Meus sinceros parabéns por mais um dos seus maravilhosos textos; estes que, de forma crítica, nos faz refletir acerca de temas tão importantes para a atualidade.
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