Seu nome é Adilson, um negão alto, magro, careca e de canela fina. Podia tranquilamente se inscrever na corrida de São Silvestre como representante do Quênia e ninguém desconfiaria que aquele atleta era um bombeiro hidráulico, um encanador. Veio consertar aqui em casa o chuveiro que havia pifado. Estava sóbrio e lúcido e a prova é que fez seu trabalho direitinho: deixou o chuveiro funcionando. Mas quando voltou mais tarde para cobrar o serviço, já estava cheio do aço, calibrado com umas e outras. Vendo-me com a tv ligada no depoimento de Delúbio Soares à CPI, o negão puxou conversa:
- Quem diria, einh! E eu que achava impossível o Lula passar os cinco dedos.
O encanador desenvolveu, então, um raciocínio extravagante para justificar o seu voto nas últimas eleições. O fato de Lula ter trabalhado numa fábrica como operário, de estar mais próximo do povo, de ser inteligente, de prometer criar novos empregos, não contou para ele. A motivação foi outra:
“Votei no Lula porque achava que um homem que só tem quatro dedos, não passa os cinco dedos no nosso dinheiro ”, disse, com tal convicção, que me confundiu. Eu não sabia mais se ele falava sério, com ironia ou de gozação. “Agora, estou decepcionado”, ele disse.
Rolou, então, um papo político. Tirei do bolso a minha carteirinha de petista, mostrando as convergências identitárias que havia entre um encanador e um torneiro mecânico. Tentei convencê-lo, embora sem argumentação consistente, de que Lula não sabia nada das maracutaias. As denúncias do Buratti contra Palocci ainda não haviam sido feitas. Fiz piruetas, malabarismos e exercícios de contorcionismo mental:
- Adilson, não é um problema de pessoas, é de sistema. Com um sistema desses, até a madre Tereza de Calcutá, a irmã Dulce e São Francisco de Assis se tornariam trapaceiros.
No final, o encanador falou: - “Fique tranquilo, doutor! O Lula pode até ter roubado, mas assim mesmo voto nele de novo”. Justificou, com ar de sabedoria: - “ Por causa dos quatro dedos, ele rouba menos do que os outros. Quem está acusando, tem cinco dedos, é muito mais ladrão”. O slogan do Maluf “rouba, mas faz”, foi substituído por “ rouba, mas rouba menos”.
Os cinco moleques
Não podia deixar meu interlocutor ir embora , sem contar para ele a parábola dos cinco moleques, cujas versões estão circulando na Internet. Era uma vez cinco garotinhos. Dois deles nasceram em Eirunepé, um em Manaus, outro em Minas Gerais e o quinto na Bahia. Juntaram-se e foram até a várzea do Careiro, onde compraram um bezerrinho do Chico Mitonho por R$ 100,00, a ser entregue na semana seguinte. No dia da entrega, porém, Chico Mitonho lhes disse:
- Puxa vida. Tenho uma má notícia. O bezerrinho morreu.
- Azar o seu. Devolva a nossa grana.
– Não posso, já gastei tudinho.
- Então, queremos o bezerro assim mesmo.
- Pra quê querem o cadáver de um bezerro ?
- Nós vamos rifá-lo.
– Vocês tão malucos? Quem vai comprar a rifa de um bezerro morto?
– A gente não vai dizer pros compradores que está morto.
Um mês depois, Chico Mitonho se encontrou novamente com os cinco moleques e perguntou:
- E aí, o que aconteceu com o bezerro?
- A gente rifou. Vendemos 500 números a R$ 2,00 cada um e arrecadamos R$ 1.000.
– E ninguém se queixou?
- Só o cara que ganhou. Aí explicamos que o bezerro tinha morrido, pedimos desculpas, devolvemos os R$ 2 e pronto, lucramos R$ 898,00.
O final da história é edificante. Os cinco moleques cresceram, se tornaram adultos e fundaram, no Brasil, um banco , uma empresa de publicidade, uma empreiteira, uma igreja e um partido político.
O PT no Amazonas
A história que repassei ao encanador me deixou meio ressabiado, logo eu que havia contribuído para a fundação de um partido político. Mas Adilson não estava nem aí. Olhava a telinha onde o ex-tesoureiro do PT, Delúbio Soares, com sua voz pastosa, falava em p'ssoas, comendo a vogal “e” de muitas palavras. Depois, com seu porte de corredor queniano, Adilson saiu, ligeiramente cambaleante em direção a um botequim. Fiquei sozinho, pensando como era terrível esse descrédito na atividade política e nos partidos, que começa a dominar a sociedade brasileira.
Lembrei a fundação do PT no Amazonas, num encontro realizado no dia 25 de maio de 1980, na sede do Partido, uma casa na Av. Joaquim Nabuco, em frente à Beneficente Portuguesa, alugada com o dinheiro suado que cada um descontava do seu salário todo mês: o mensalinho. Nesse dia, fui eleito presidente do PT-Am, numa chapa da Comissão Executiva Estadual do qual faziam parte José Carlos Gomes Sardinha, Aluisio Nogueira de Melo, Márcio Souza, Selda Vale da Costa, Graça Barreto, Ricardo Bessa, Francisco Massena, Raimundo Nonato Ferreira, Domingos Pereira e Osvaldo Coelho.
O coordenador geral provisório, Rosendo Neto de Lima, já falecido, deu posse à Comissão Executiva. A ata desse I Encontro Estadual do PT foi redigida pelo então estudante de medicina José Carlos Sardinha, hoje médico querido e respeitado na cidade de Manaus. Assinaram a lista de presença 123 pessoas, cada um indicando sua categoria profissional: professores, jornalistas, economistas, industriários, portuários, agrônomos, lavradores, comerciários e estudantes e até um médico: Rogelio Casado Marinho Filho.
Dos jornalistas do PT estavam presentes, segundo a lista, Aldisio Filgueiras, Narcisio Lobo, Stanley Whibbe, Antônio José Costa, entre outros . Muitos professores como Geraldo Lopes de Souza, Irinéia Vieira dos Santos, Lemos, Ivaneide Marques, José Lauro Thomé, Carlos Rubens, Gleice Oliveira. Diversos estudantes entre os quais Públio Caio Cirino, Bernadete Andrade, Laerte Aguiar, Rosana Bessa Rebello, José Dantas Cirino.
Entre os convidados não-petistas, estavam alguns observadores representantes da oposição e da luta contra a ditadura: Elizabeth Azize, deputada estadual; Mário Frota, deputado federal; Fábio Lucena, vereador; Vitório Cestaro que assinou como ‘padre e vereador', além do poeta Thiago de Melo e da jornalista Ana Helena Gomes.
Hoje, relendo a ata e a lista de presenças, me pergunto o que estarão pensando agora os participantes daquele encontro. Seria interessante ouvi-los.
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