A expressão "Cala boca, caboca" era muito usado no Amazonas.
- ´Cala-boca´ já morreu, quem manda na minha boca sou eu!.
Era assim, com essa resposta atrevida, quase insolente, que qualquer brasileiro defendia sua liberdade de expressão e de opinião. Há cinqüenta anos, essa locução popular com o acréscimo de "caboca", marcava o jeitão de falar regional e era bastante usada, até mesmo de brincadeirinha, pelas crianças. Hoje, eu te pergunto: será que o ´Cala-boca´ morreu mesmo? Alguém viu o atestado de óbito dele? Quem foi ao enterro? Qual foi o médico que fez a autópsia?
Na última vez que escrevi de forma sistemática para um jornal de Manaus, o ´Cala Boca´ estava vivo, vivíssimo, e aparecia na folha de pagamento do Governo do Estado com o nome de Cala-Boca de Almeida Carvalho Rainhas. Em junho de 2002, me mandou fechar o bico quatro vezes. Quatro vezes, me calei. Conto como foi.
O IPTU DO NEGÃO
Há quase dois anos, um leitor enxerido (leitor adora meter a gente no fogo) me mandou um recibo da Divisão de Cadastro da Prefeitura de Manaus. Tratava-se do IPTU da “mansão do Tarumã”, de propriedade do então governador Amazonino. Seu valor era uma merreca de um real e vinte centavos por dia, ou seja 482 reais ao ano. Comparei com o IPTU que minha irmã Preta pagava na Cohab-Am. Fiz, então, uma pergunta ao prefeito Alfredo Nascimento:
- Por que o IPTU de uma mansão luxuosa de 2.500 m² é menor do que o de uma casa popular de 190 m²?”.
Os dados sobre o IPTU não são confidenciais, podem ser divulgados. Apesar disso, Alfredo não respondeu. Não pude insistir porque o ´Cala-Boca´, que era editor do jornal, me ordenou: “Cala a boca, caboco”. Calei. O que é que eu podia fazer?
AS MORTES NA ´BALBINA´
O que eu podia fazer, fiz. Procurei outro tema. Uma médica, corajosa, valente e cidadã, que eu não conheço pessoalmente, me havia enviado documento, denunciando o alto índice de mortes de crianças recém-nascidas na Maternidade Balbina Mestrinho. Naquela época, lá morriam bebês, numa proporção três vezes maior do que a média nacional. Mesmo sem conhecer a médica, comprei a briga, porque a causa era justa. Escrevi a crônica intitulada “Lá vem mais confusão”, informando que a Maternidade havia se transformado em necrotério de bebês.
Instaurou-se um clima de guerra de guerrilha. Meu correio eletrônico ficou entupido “até o tucupi”. Uma das cartas era boçal. Ofendia minha dignidade, me tratava de ´vendido´ e coisa-e-tal. Vinha assinada por um secretário estadual, que não era o da Saúde. Era o próprio ´Cala-Boca´, querendo mostrar serviço. Tive vontade de dar-lhe um cacete verbal. No entanto, engoli em seco. Ele é filho de pessoa muito especial e querida, uma irmã, que não merece ser ferida, por tabela. Fechei o bico.
LULU NO FEBABÁ
Na semana seguinte, buscava assunto para minha crônica. Não podia falar dos dois temas palpitantes – o IPTU do Amazonino, e o bebecídio da Balbina. Olhei prum lado, pro outro, vi apenas o Lupércio, marcando bobeira. Então pensei: “Só tem tu, então vai tu mesmo”. É que o Lupércio, então presidente da Assembleia Legislativa, havia inaugurado o FEBABÁ – Festival da Babaquice Bairrista, distribuindo em seu programa televisivo um pó milagroso que – ele jurava - engravidava mulheres estéreis.
Tu te lembras, leitor? O Lupércio viajou de férias para Jerusalém, entrou na gruta onde diz-que Nossa Senhora teria amamentado o menino Jesus, raspou o pó da parede, encheu um saquinho de plástico e trouxe para Manaus, garantindo que mulher que ingerisse aquele pó, ficaria buchuda. Nenhum filho do pó nasceu, mas depois, uma jovem, de menor, grávida, apareceu nos jornais denunciando que o Lupércio não acreditava no seu próprio pó, porque havia usado, com ela, o método direto papai-mamãe. Castigo de Nossa Senhora!
Escrevi, então, uma crônica, intitulada “O pó do Lulu”, demonstrando que ele havia profanado o sagrado em benefício próprio, ao explorar a boa-fé da população humilde. Houve pressão. Uma vez mais me exigiram: “Cala a boca, caboco”.
BERINHO E A CULTURA
Com três temas censurados, fiquei sem assunto. Todas as vezes que fico nessa situação, o Robério Braga - eterno Secretário de Cultura – me salva. Procuro saber o que ele anda fazendo, e acabo descobrindo aquilo que ele não está fazendo. Dito e feito. Nesse dia, todo farofeiro, Berinho aparecia nos jornais se gabando de ter dado R$25.000.000,00 para os bois de Parintins, construindo elevador privativo nos camarotes vips do bumbódromo.
O Berinho (des) cuidava da Cultura, do Turismo e dos Desportos. E justamente, no mesmo dia, o mesmo jornal publicava uma foto dramática de dois meninos da Chapada, de calção esfarrapado, que jogavam tênis na rua, no meio dos carros, com risco de serem atropelados, usando dois pedaços de tábua rachada como raquete. Eles queriam ser iguais ao Guga, que acabara de ser campeão mundial.
Sensibilizado com a imagem, escrevi “Os tenistas da Chapada”, calculando quantas quadras de esportes para crianças carentes poderiam ser construídas com esse dinheiro do elevador, que só ia servir mesmo para a diversão de uma cambada de ociosos embriagados; quantas bibliotecas populares? Por que não se discute os gastos na área cultural?
O ´Cala Boca´ veio do Gabinete do Berinho, em carta assinada por sua chefe de gabinete que puxava minhas orelhas e me esculhambava, dela guardo belas recordações de infância, por ser neta da minha avó. Não usou um só argumento para responder as críticas feitas. Era pura emoção. Não conseguia separar o institucional do pessoal. Queixava-se que eu a havia ferido. Eu, hein? Nem toquei no nome dela! Mas o recado era inapelável: “Cala a boca, caboco, senão nosso afeto vai pro beleléu”. Me calei.. Berinho 1 x 0 Taquiprati. Gol contra.
O ´CALA-BOCA´ É IMORTAL
Esses quatro episódios têm valor didático. Mostram algumas limitações do jornalista que enfrenta o ´Cala Boca´, quando tenta cumprir o seu dever de criticar quem tem poder e grana. Mas, afinal, quem é o ´Cala-Boca´? O político que pressiona e ameaça, o empresário que suborna, o funcionário que bajula, o anunciante que cobra, o leitor que exige, o amigo que te afaga, o parente que reclama. Somam-se a isso os compromissos afetivos, a troca de favores, o puxa-saquismo, os interesses legítimos ou não do próprio jornal e também de quem nele escreve, a vaidade, o medo, os nossos limites cognitivos – tudo isso interfere na hora em que devemos exercitar a crítica independente e isenta.
Sem querer, a gente acaba sendo parcial. Quer ver uma coisa: os moradores mais velhos de Eirunepé contam que o dono da “mansão do Tarumã” mijou na rede até os treze anos de idade. Tudo bem. E daí? Mas se o mijão fosse o Rubi-Rola, lá do bairro de Aparecida, invadiria eu a privacidade do meu amigo de infância, quase cunhado? Tem cem anos!!! Se o IPTU da mansão do Rubi-Rola, no Beco da Bosta, fosse uma merreca, teria eu condições afetivas para denunciá-lo? Confesso, humildemente, que quem manda na minha boca nem sempre sou eu. Mas, orgulhoso, informo que não desisti de chegar lá. Continuo lutando.
Essas são as limitações que você encontrará, leitor, nas nossas conversas dominicais, aqui, nessa página. É importante saber que elas existem para que, juntos, possamos administrá-las, criando um espaço informativo, crítico, inteligente e bem humorado. Nós não somos donos da verdade, mas apenas de uma versão dela, elaborada no meio de tantas tensões e de tantas contradições (Iche Maria! Estou encantado com o meu próprio amadurecimento. Quanta sensatez! Será que estou envelhecendo?)
P.S.¹ - As pressões já começaram. Meu sobrinho, ´Pão Molhado´, aluno de Serviço Social, mal soube que eu voltava a escrever, telefonou me pedindo para anunciar o aniversário de uma gatinha que ele está azarando lá na Faculdade Dom Bosco. Resisti. Mandei que procurasse alguma coluna social. Aqui não, violão! Taquiprati 5 x Pão Molhado 0.
P.S.² - O Amazonas vai tremer quando sair o livro “A Sultana dos Seringais”, revelando, tim-tim por tim-tim, quem comeu a esfiha da minha amiga Charufe Nasser. Com belíssima capa da Rita Loureiro, ele já está no forno.
P.S.3 - Mais de um ano de governo Lula e necas de homologação da Terra Indigena Raposa Serra do Sol. Foi promessa de campanha.