Podia chamar-se Raimunda Silva, Juracilda Soares, Tibúrcia Pereira - e daí? Na pia batismal, no entanto, recebeu um nome nobre, de condessa espanhola: Mercedes Ribeiro Ponce de Leão. Esse foi, também, o nome escolhido por um grupo de professores para denominar o laboratório de matemática do Instituto de Educação do Amazonas (IEA), recentemente inaugurado. O critério da escolha foi, não a linhagem genealógica, mas a qualidade da pessoa - uma professora, já aposentada, que durante mais de 50 anos formou gerações e gerações de professores, ensinando-os a amar a matemática e a sair pelo mundo pregando sua beleza.
- "Ainda bem! Ainda bem que ela se chama Mercedes Ribeiro Ponce de Leão" - exulta um ou outro leitor desavisado. "Imagina! Nenhum aluno poderia aprender como elevar uma fração a uma potência, dentro de um espaço pedagógico denominado, por exemplo, Laboratório de Matemática Tibúrcia Silva, porque esse nome é demasiado plebeu para atividade tão nobre".
Preconceito bobo! Dona Mercedes, a homenageada, é nome de laboratório, justamente porque provou o contrário. Com seu jeito de ensinar, demonstrou por a + b, que qualquer pessoa sadia é capaz de aprender matemática em qualquer lugar, independente do bairro onde mora, da profissão do pai, da classe social ou da renda familiar. Um jeito de ensinar Durante décadas, diariamente, ela seguiu o mesmo ritual. Podemos acompanhá-la num dia qualquer dos anos 60. Nesse momento, está saindo de sua casa, na rua Luís Antony, ali naquela calçada alta, detrás do Colégio Dom Bosco e caminha em direção ao Instituto de Educação. Ela é aquela ali, miudinha, de sandálias, vestindo, com elegância discreta, uma saia justa de linho abaixo do joelho e blusa de lingerie, de mangas bordadas. - Bonita, graciosa, bem desenhadinha - comenta sua ex-aluna, Stella Freire Alencar, orgulhosa porque - justifica - "todo mundo gosta de ter professora bonita, em todos os aspectos, inclusive o físico".
Agora, dona Mercedes está entrando na sala de aula e aí sua beleza física e sua elegância se prolongam no jeito de ensinar. Em primeiro lugar, ela é muito exigente. Não dá refresco, não passa a mão na cabeça de ninguém, não alisa. Os cadernos grossos dos alunos estão repletos de exercícios, todos eles corrigidos cuidadosamente. Ela cobra de cada um ordem, asseio, elegância, disciplina, hábitos de estudo, atitudes, postura. O seu grau de exigência vem aliado a uma extrema delicadeza, demonstrando respeito a todo e qualquer aluno. São centenas e centenas em cada semestre, mas sua memória treinada permite-lhe que chame cada um pelo nome e sobrenome. Nenhum aluno, para ela, é um número abstrato. Todos têm identidade. Ela é incansável no acompanhamento individual. Não tem, nunca teve, qualquer problema disciplinar. Possui total domínio de classe. - Dona Mercedes, hoje não vou pra aula porque estou com catapora. - Suas colegas já tiveram catapora, Maria Helena Freire de Souza? - Já! - Então, não há perigo de contágio. Se conseguir ficar em pé, venha, porque eu vou dar prova. Os professores, em geral, ou são "oba-oba", populistas que vivem puxando o saco dos alunos ou são "carrascos", malvados e tiranos. Dona Mercedes não é uma coisa nem outra. Ela é firme, decidida, mas é delicada, incapaz de uma grosseria. Nunca tripudiou sobre a ignorância de ninguém.
- A palavra mais apropriada para defini-la é equilíbrio. Ela é um modelo para mim, é o tipo de professora que eu queria ser - comenta sua ex-aluna Regina Coeli, num texto que foi lido na inauguração do Laboratório de Matemática Mercedes Ribeiro Ponce de Leão.
Aliás, Dona Mercedes não sabe, mas ela vai sempre para a berlinda, quando seus ex-alunos - vários deles já aposentados - se reúnem na hora da saudade. Suas orelhas devem ficar ardendo, porque o papo rola daqui prali e vai acabar nela, tema recorrente das nossas conversas. Lembrada com muito carinho, sua influência tem uma abrangência que ela sequer pode imaginar, dentro de sua modéstia e simplicidade. - O seu exemplo foi muito forte e se espalhou em progressão geométrica, pois muitos de seus alunos foram agentes multiplicadores de seus ensinamentos - evoca, emocionada, Regina Nakamura.
Matemática: um trauma
Outro dia, numa festa animada de aniversário, conversando, descobrimos porque dona Mercedes nos marcou tanto. Acontece que quase todo mundo tem trauma com a matemática e com as suas filhas: a álgebra e a geometria. Basta falar em equações algébricas para a cabeça de muita gente começar a expelir fumacinha, preta, de óleo diesel, anunciando uma explosão. Tem caboquinho cujas pernas tremem quando ouve falar em catetos, hipotenusas, senos e co-senos. A simples menção da palavra "logaritmo" já produziu mais desmaios que a própria fome, o que pode ser comprovado estatísticamente. Francamente, leitor (a), entendo essas pessoas, porque eu mesmo sou uma delas. Ainda hoje, posso encarar de frente um monômio, se ele vier assim, sozinho e desarmado, mas - pelo amor de Deus - quando eles atacam em bando como binômios, trinômios e polinômios, considero uma covardia; afinal, sou apenas um e eles, muitos. Potenciação de uma fração, então, nem falar, é como um soco do Popó no cérebro: nocauteia. Minhas notas de matemática, no ginásio, foram sofríveis. Por isso, para fazer o exame de admissão ao curso pedagógico, tive de buscar reforço. Dona Mercedes dava aula particular, no nosso caso, inteiramente grátis, levando para o recesso do seu lar o ensino público, gratuito e de qualidade. Segui a trilha das minhas irmãs: procurei, chorando, a casa da calçada alta, pedindo socorro. Ela me recebeu: - Você vai aprender, porque você PODE. Aí, aconteceu o milagre. Foi um deslumbramento. A matemática, que no ginásio parecia um bicho de sete cabeças, começou a ficar inteligível com dona Mercedes, no curso pedagógico do IEA. Seu método de ensino explorava dois aspectos que lhe garantia o sucesso: de um lado, tinha aquela coisa do desafio de vencer as próprias dificuldades, a competição sadia, a disputa, a incitação à luta, a perspectiva de vencer o que era difícil. De outro lado, ela explorava o caráter lúdico: solucionar uma equação era como matar uma charada ou resolver palavras cruzadas. Era uma brincadeira gostosa, um jogo divertido. A matemática de dona Mercedes não se limita ao decoreba de tabuadas e fórmulas. É uma ciência e uma arte. Com ela, aprendemos a pensar matematicamente, isto é, a pensar logicamente, fazer deduções, além de elaborar hipóteses, avaliar variáveis. Ela nos forneceu ferramentas para buscar a coerência do raciocínio, apreciar a beleza de uma argumentação muito bem estruturada, enfim, para organizar o pensamento de forma sistemática e articulada. Na medida em que a matemática é também uma linguagem, ela nos ensinou a escrever. Sua matemática, com raízes na vida diária, despertou nossa curiosidade intelectual, sem a qual ninguém estuda, pesquisa ou age. Desta forma, mesmo por via indireta, ela acabou nos mostrando, ainda, as formas diferentes de ver e interpretar o mundo. Li, em algum lugar, que o autor da teoria dos conjuntos, no final do século XIX - um matemático chamado Cantor - dizia que "a essência da matemática é a liberdade". Se assim for, então, com a professora da calçada alta aprendemos a pensar livremente, sem medo. Li também em algum outro lugar que o pesquisador britânico Paul Dirac, prêmio Nobel de Física, depois de prever a existência do pósitron - seja lá o que isso signifique - concluiu que "se Deus existe, ele é um grande matemático". É que como sabe a nossa vizinha Leonor, lá no bairro de Aparecida, no seu quiosque de verdura, ninguém pode criar nem um um picolé, nem um dindim, sem a matemática. Dona Mercedes continua dando aula particular até hoje, na mesma casa da calçada alta, depois de haver lecionado mais de 50 anos, primeiro como professora primária, no ensino básico e depois, no curso pedagógico do Instituto de Educação do Amazonas. Com essa crônica, sei que estou cometendo uma violência, porque ela não gosta da ribalta, do palco, do foco de luz centrado sobre sua pessoa. Mas não tinha outra alternativa. Nesses últimos trinta anos, me senti o próprio leproso do Evangelho. Você se lembra? Um dia, Jesus entrou numa aldeia lá nos confins da Galiléia. Encontrou lá dez leprosos, que choraram: "Mestre, cura-nos". Jesus mandou que fossem buscar o sacerdote. No caminho, eles ficaram curados. Mas só um deles voltou para agradecer. "Onde é que estão os outros nove", perguntou Jesus. Pois é, dona Mercedes, voltei, com procuração dos outros nove, para lhe agradecer, publicamente, pelo milagre. P.S (20/05/2017) - Passei por Manaus em fevereiro de 2001, convidado para um evento no Colégio Dom Bosco. Aproveitei um dos intervalos, dei uma fugidinha e subi os degraus da calçada alta. Fui visitar minha amada mestra, já com a marca dos anos. Não me reconheceu de imediato, mas quando me apresentei, ela recordou aquele dia longínguo em que eu a busquei pedindo socorro. Lembrou nominalmente de cada irmã minha e pediu notícias delas. Carinhosa, solícita, linda, me convidou um cafezinho. Hoje, dia 20 de maio de 2017, sou informado do seu falecimento. Que descanse em paz. Fica viva em nossa memória e em nosso coração, ela que marcou várias gerações e nos ensinou, além da matemática, como um professor deve se relacionar com seus alunos, como uma pessoa deve tratar outra pessoa. O resto é silêncio.
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