Ontem de manhã cedo dona Elisa abriu o guarda-roupa para escolher como se vestiria para ir à missa das sete na igreja de Nossa Senhora Aparecida que ela, na maior intimidade, chama de Cidinha. O seu guarda-roupa não é tão variado como o de dona Rosane ou da Ledinha Collor, considerando que o PC Farias ou seus fantasmas nunca depositaram nenhum cheque na conta dela. Portanto, as opções são poucas.
Quando ia pegar uma blusa azul anil que a Preta lhe deu no Dia das Mães, dona Elisa se lembrou do apelo do presidente Fernando Collor:
- Minha gente, saiam de casa no domingo com alguma peça de roupa com uma das cores da bandeira nacional. Nós temos, minha gente, que dar um sinal a este País de que somos a maioria.
Dona Elisa fez o sinal da cruz três vezes, sapecou várias jaculatórias “Jesus Maria José minha alma vossa é” e devolveu a blusa azul ao cabide. Para ela, Collor é o Capeta e seu sócio PC Farias é o próprio Capiroto. Ambos fedem a enxofre.
“Não quero negócio com essa gente” – ela pensou, enquanto procurava outra blusa. Encontrou uma de seda, da cor de vinho de buriti, presente do genro, que comprou numa boutique de Juiz de Fora. Mas aí lembrou que a cor de buriti estava mais para o amarelo. Amarelo lembra ouro. Ouro lembra PC, o que poderia ser interpretado como um apoio às falcatruas de Collor.
Na terceira tentativa, dona Elisa encontrou aquela blusa de gola canoa, aquela que havia usado no casamento da Dile com o Eliezer e depois no batizado da Natália, sua neta. Estava fora de moda, mas era uma blusa que ela gostava muito elogiada pela Bambi:
- Com essa blusa a senhora fica uma gatinha, mamãe. Parece até a Hebe Camargo.
O único defeito da blusa era sua cor verde. Verde lembra dólar. Dólar lembra PC Farias. PC lembra Collor: o Capeta e o Capiroto juntos. Não era adequada para assistir a missa. Irritada, dona Elisa devolveu a blusa à cruzeta do guarda-roupa.
“Ah, essa daqui serve! – gritou dona Elisa, vitoriosa, vestindo uma blusa branca. O branco, a cor da Virgem Maria, lembrava a pureza da mãe de Jesus e realçava sua pele recém-queimada pelo sol das praias de Fortaleza, onde havia passado suas férias com a Teca. Mas a Céuzinha acabou com sua alegria:
- Mãe, branco também é cor da bandeira. Vão pensar que a senhora está apoiando o Dito Cujo, o Cramunhão.
Era verdade. Dona Elisa só não falou alguns palavrões porque depois teria de se confessar com o padre Clemente, que mandava rezar um rosário de penitência para cada palavrão pronunciado. O Clemente não dava refresco.
Desconsolada, dona Elisa olhou para dentro do guarda-roupa e descobriu que as suas blusas e os seus pouco vestidos tinham apenas as quatro cores da bandeira nacional. Sentiu-se, literalmente uma descamisada, uma desblusada. Foi até o cesto de roupa suja, havia um vestido preto elegantérrimo usado pela Helena, ontem, no aniversário do George Nakamura, que o deixou para lavar, porque estava manchado com a caldeirada de tucunaré que caiu no colo dela.
Então, dona Elisa tentou sua última cartada. Telefonou para sua filha Glória, ali no Beco da Indústria, e para suas amigas Maria do Carmo Feitosa e Suely Simões para pedir delas um vestido emprestado que fosse de outra cor. Os telefones chamavam e ninguém atendia. Todas já haviam saído para a igreja.
A imagem está agora congelada: diante do guarda-roupa, dona Elisa, paralisada, hesita. O que fazer? Ela veste uma roupa da cor da bandeira nacional e desta forma apoia a roubalheira do Capiroto ou falta à missa, pela primeira vez em 78 anos, cometendo assim um pecado?
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Bem, estamos quase no final do drama vivido pela devota da Cidinha. Quinze telefonemas votaram para que dona Elisa fique em casa. Outros quinze votaram para que vá à missa de qualquer jeito. Está empatado. O vigário da paróquia desempate. Nesse momento, o padre Marcos está lendo o Evangelho de São Lucas (12, 49 a 53):
- Julgai que vim trazer paz à terra? Não – digo-vos – vim trazer separação. Quando vedes levantar-se uma nuvem no poente, logo dizeis: aí vem chuva. E assim sucede. Quando vedes soprar o vento do sul, dizeis: haverá calor e assim acontece. Hipócritas, sabeis distinguir os aspectos do céu e da terra, como pois não reconhecer o tempo presente? Por que não julgais por vós mesmos o que é justo!
Dona Elisa julgou por ela mesma, decidiu o que vestir e saiu para a igreja. As últimas imagens do nosso filme se sucedem rapidamente. Ninguém sabe ainda como dona Elisa está vestida. Ela comunga, mas a imagem é só do seu rosto. Ela canta, ela reza, mas o close-up só mostra olhos, lábios e nariz. No final da missa, a câmara fixa detrás do altar, em um plano aberto, mostra dona Elisa dos pés à cabeça, desejando a paz de Cristo à Suely Simões e à Maria do Carmo. A Tequinha enxerida se infiltra para aparecer no filme dirigido pelo Tuta.
Dona Elisa, sua cabeça, seu coração encharcado de brasilidade. Como milhões de brasileiras e brasileiros anônimos que constroem, com seu trabalho, este País, ela não admite que nenhuma quadrilha, nem a de Collor e PC Farias, se aproprie das cores da bandeira nacional, como já se apropriou dos cofres públicos.
Por isso, ela está vestida com uma blusa branca com flores brancas e azuis e uma saia verde e amarela. Poderia ser uma torcedora do Brasil na Copa do Mundo, se não tivesse colocado na lapela um chumaço preto, em sinal de luto, de vergonha e de indignação.
Sua cabeça, no caminho para casa, vai matutando e remoendo as palavras do Evangelho: “Eu não vim trazer a paz”. Com Collor, PC Farias e Amazonino, com a mentira e o roubo, o cinismo e a safadeza, ela quer a separação, seguindo o exemplo de milhões de brasileiros anônimos.
Depois que o filho foi exilado e preso, toda vez que ela passa em frente ao Quartel do 27 BC, ali na rua Dez de Julho, dá uma cuspida na porta. Ela sabe que nuvem carregada é sinal de chuva, mas que depois vem a bonança. Ela sabe, sobretudo, reconhecer o tempo presente, um novo tempo de absoluta depuração, onde as pessoas estão indignadas, mas nutrem esperanças. Ela sabe, com São Lucas, julgar o que é justo, o que é ético. O justo é: Fora Collor já! Ele não. Amazonino não!