- Vovó, eu quero ser médico.
A confissão foi feita assim, de supetão, por um dos netos da dona Elisa, o Daniel, 18 anos, que invadiu a “gaiolinha” do Beco da Bosta, exibindo o cartão de inscrição no vestibular. A notícia caiu como uma bomba. Dona Elisa ficou arrasada. Lívida. Sem fala. Havia perdido definitivamente o controle do destino de sua prole, até então gerida com mão-de-ferro.
- Minha Nossa Senhora de Aparecida! O que foi que eu fiz para merecer um castigo desses? Não era suficiente para pagar os meus pecados ter um filho comunista? Por que agora essa punição de ter um neto médico?
Antes que o leitor confunda, é preciso esclarecer: dona Elisa nada tem contra os médicos. Ao contrário. Neste exato momento, ela está sendo tratada de uma bursite e é Deus no céu e o doutor Luís Fernando na terra (Não o Nicolau-lá-lau bate-perna bate-pau do rombo da SESAU – vixe Maria – mas o Passos, competente e honesto, reumatologista que opera milagres). Tem ainda um genro, excelente profissional da medicina, em quem ela confia. A bronca, portanto, é outra.
O caso é que a dona Elisa, há 50 anos se dedica ao magistério, ensinando catecismo na Paróquia de Aparecida. Ganhou até um placa comemorativa de bronze pelas bodas de ouro. Para ela, viver é ensinar. O evangelho.
Mas não é só ela não. Seus irmãos, irmãs, cunhados e cunhadas foram todos professores espalhados pelas escolas do Amazonas. A finada Ernestina, por exemplo, deu aula no Grupo Escolar Coronel Fiúza, no Careiro, e rompeu um namoro firme com o escritor Áureo Nonato para casar-se com um professor de psicologia e inglês.
A pedagogia da Adelaide – a tia Dedé – fez sucesso durante 30 anos em que ensinou no “Cônego Azevedo” com a cartilha do “Pedrinho” e o “Infância Brasileira”. A Raimunda Conceição hoje usufruiu uma “gorda” aposentadoria do Colégio Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, de Coari. A Helena, casada com o professor José Dantas Cyrino (Colégio Ruy Barbosa) foi professora na Escola de Datilografia Carmela Faraco, ali na rua Luis Antony. Manoel e Esmeraldo, do IEA e do Ginásio Amazonense, dispensam apresentações.
Professor: um destino
O magistério é, neste caso, uma vocação e um destino familiar e não individual. A geração seguinte, cumprindo a mesma sina, é toda ela dedicado ao ensino. Onze dos treze filhos da dona Elisa, todos pobretões, exercem a docência. O que sobrou, se não tivesse morrido ainda criança, hoje seguramente estaria fazendo ginástico com a remuneração miserável de professor. Até mesmo a única filha que não se sujava com o pó de giz e se dedicava a combater a parasitose, classificando helmintos e protozoários, fez concurso como bioquímica para a Universidade do Amazonas, onde é professora.
Tem tanto Bessa dando aulas hoje no Amazonas, que depois da batalha do igarapé de Manaus, quando o então governador Mestrinho demitiu dez professores que lutavam por melhores condições de ensino, incluindo os salários dos docentes, a metade era da família Bessa, o que levou as irmãs Elisa e Helena a serem eleitas para o Comitê de Mães dos professores grevistas. Eram “as loucas de maio” do Igarapé de Manaus. Desta forma, em certa medida, é correto falar do processo de “imbessilização” do ensino (atenção revisor, é com dois “ss” mesmo).
Trata-se de uma fixação mórbida pelo magistério, com traços masoquistas, porque apesar do salário tão indigno, toda a família se orgulha de ser composta por professores e ainda estimula os filhos para a carreira do magistério. Na família, por exemplo, nenhuma criança teve o prazer de “brincar de médico”. Os jogos infantis foram “brincar de dar aulas”, o que não permite – infelizmente? – auscultações, toques e outros babados educativos.
Mas aonde é que quero chegar com toda essa xaropada? Apenas demonstrar porque dona Elisa ficou arrasada com a opção de seu neto pela medicina. Ele está se desviando do rumo familiar e deve ter razões poderosas para isso.
Preocupado, dona Elisa decidiu convocar de urgência um conselho de família para analisar o fato e dar um aperto no Daniel, que teria de explicar de onde ele tirou aquela ideia de não ser professor.
A sala estava cheia de filhas, filhos, noras, genros, netas, netos, papagaios, cachorros e xerimbabos.
- Anda, menino! Fala! Por que? Explica! Anda!
- Sabe o que é, vó? Professor trabalha demais e ganha pouco. Médico, pelo menos ajuda a curar doenças e ganha bem.
Uma gargalhada coletiva clânica explodiu na sala já como uma forma de pressão. Dona Elisa pontificou:
- Deixa de ser leso, menino, onde já se viu essa história de que médico ganha dinheiro? Um médico, hoje, é tão lascado quanto um professor. Você sabe quanto eu paguei por uma consulta ao doutor Luis Fernando Passos? Hein? Uma miséria.
O neto resistiu, contra-argumentando ironicamente:
- Eu não quero ser médico de gente pobre como a senhora. Quero ser médico de vereador ressarcido. A Câmara é uma mina de ouro, porque vereador só vive adoentado. Foram bilhões de cruzeiros pagos nos últimos 8 anos, um total de 183 ressarcimentos.
- De onde é que você tirou tamanha besteira?
Saiu publicado n´A Crítica, nome por nome. Quero ser médico do Carrel Benevides que, quando presidente da Câmara, adoeceu 8 vezes e embolsou milhões de cruzeiros para suas consultas. A Lurdes Lopes, aquela que usa óculos escuros de motorista de táxi, viveu o tempo todo doente e foi ressarcida dez vezes em milhões de cruzeiros. A lista é grande – ele disse e prosseguiu:
- O Antônio Carioca pagou uma fortuna em mais de 15 vezes que adoeceu. O Roubério Braga encheu os bolsos, em duas legislaturas, dizendo que era para pagar seus médicos. E o Manuel Paiva, vó? Nossa! Até o Sebastião Reis e o Júlio Celso de Lima Seixas, que pareciam tão sadios, adoeceram muitas vezes e pegaram bastante grana.
Dona Elisa e seu neto, que acreditam na função social da medicina e conhecem muitos médicos que honram o juramento de Hipócrates, resolveram marcar outra reunião familiar, enquanto aguardam a apuração dos repórteres de A Crítica com a lista dos médicos consultados pelos vereadores ressarcidos.
Ela aconselhou o neto a estudar veterinária para poder cumprir assim o objetivo de tratar dos ressarcidos.
xxxxxxx
Memória
Os ressarcidos que, por iniciativa própria se recusam a recolher aos cofres públicos a importância indevidamente apropriada, não estão dando um exemplo de inteligência. Vão acabar devolvendo, obrigados por decisão do Poder Judiciário. E quanto mais resistem, mais ficam em evidência. Por outro lado, para o eleitor, o fato é extremamente positivo. Às eleições estão próximas e isso ajuda a refrescar a memória. Não vote em vereador “doente”. Vote em sadio.
Terras indígenas
Em entrevista ao jornalista Orlando Farias, a deputada Beth Azize, sempre lúcida e didática, não deu refresco. Declarou: “A alegação de que a demarcação das terras indígenas impede o desenvolvimento econômico do Amazonas não passa de conversa fiada, porque os índios nunca tiveram suas terras demarcadas e nem por isso o Amazonas conseguiu transformar as riquezas de seu subsolo, por exemplo, em bem-estar para o seu povo”. Mais claro não canta o galo.
Conversa fiada
O Secretário do Meio Ambiente do Amazonas, José Belfort, enquanto isso confirma toda a conversa fiada – fiada mesmo? – denunciada pela deputada, temperada com retórica laudatória e vazia. Para ele, em 1991, “surgiu um líder nacional, o governador Gilberto Mestrinho, que galgou as fronteiras internacionais e desmascarou o ecólogo neurótico” (sic).
Treinamento
Os funcionários do Ministério da Saúde receberão treinamento especial para aprenderem a avaliar os futuros processos de licitação, segundo determinação do ministro Alceni Guerra. Se sem treinamento, já fizeram o que fizeram com as bicicletas e as mochilas, imaginem após o treinamento.