CRÔNICAS

Diferenças culturais: OK, Bebel das Tabocas?

Em: 30 de Setembro de 1991 Visualizações: 1379
Diferenças culturais: OK, Bebel das Tabocas?

O navio Seabovi, de bandeira cipriota, aportou em Paranaguá, distante 100 quilômetros de Curitiba. Seu comandante, o grego Kairakos Chistodolou, 52 anos, desceu do barco, mostrou seu passaporte para o agente da Polícia Federal e cumprimentou-o juntando o indicador e os polegar da mão direita em círculo. O policial deu-lhe uma chapuletada e prendeu-o por desacato à autoridade.

A notícia foi publicada pelo Jornal do Brasil (8/8/91), que informou: Kairakos não entendeu bulhufas. Enquanto o policial afirmava que foi agredido por um gesto obsceno, o comandante grego jurava que, com aquela rodinha dos dedos, havia feito apenas um gesto internacional, uma rosquinha, que quer dizer: Ok! Tudo bem!

No encontro de culturas diferentes, interpretar o gesto do outro, tomando como base o seu próprio código de comunicação, sempre deu confusão desde Cristovão Colombo que, em contato pacífico com os indígenas de Cuba, mandou tocar tambores em sinal de alegria e de festa, mas foi interpretado como um grito e uma declaração de guerra pelos nativos.

No Amazonas, os Parintintin foram massacrados durante três séculos, por serem considerados ferozes e violentos. Em 1922, Curt Nimuendaju entrou em contato com eles e descobriu que eram pacíficos e amistosos. Acontece que a forma de saudação dos Parintintin consistia em levantar a borduna e dar um grito de júbilo, correndo em direção ao visitante. Aí, eles paravam e trocavam abraços. Nenhum colonizador português esperou para conferir. Mandavam bala em massacres sanguinolentos.

Perambulando

Eis o que eu queria dizer: o secretário do Meio Ambiente, Ciência e Tecnologia, José Belfort Bastos, também não esperou para conferir. Disparou o gatilho, declarando que as áreas de perambulação dos índios, destinadas à caça e à pesca, era uma invenção dos antropólogos para se apoderarem dos minerais existentes nessas terras. Aliás, como todo mundo sabe, antropólogos adoram minérios, muito mais que os geólogos.

Belfort faz tudo o que seu mestre mandar. Ele acredita que a área de perambulação é espaço de vagabundagem, que os índios já têm terra de sobra e que essa coisa de perambulação é “viadagem” de antropólogos e ecologistas. Como ele, Belfort, só precisa mesmo perambular pelos tapetes do seu gabinete, acha que é muita terra para pouco índios, repetindo a ladainha das mineradoras e da mídia.

Com esses – digamos assim – pressupostos teóricos, Belfort declarou em sessão na Câmara Municipal de Manaus: 52% do território do Estado do Amazonas pertencem aos índios “e não ao povo amazonense”.

Qualquer pessoa com um mínimo de rigor lógico sabe que os dados de Belfort – o Bebel da Taboca – tem o mesmo valor que as estatísticas anunciadas pelo governador Gilberto Mestrinho sobre a existência de 2 milhões de jacarés em Nhamundá, ou seja, são furadérrimas e não merecem crédito, porque não indicam a metodologia pela qual se chegou a este resultado e não resistem a qualquer comprovação.

No entanto, leitor (a), hoje vou pedir a tua colaboração no sentido de nós – eu e você – fazermos um esforço para fingir que acreditamos na potoca do Bebel, que ele tem razão e que os povos indígenas ocupam efetivamente 52% do território amazonense.

Vamos à prova dos noves-fora. O Amazonas tem 1.558.987 km², o que significa que os índios estariam na posse de 810.673 km², sobrando cerca de 748.314 km², o que é muito pouco para “o povo amazonense”, segundo Bebel.

Ora, a Bélgica tem 30.513 km², onde vive uma população superior a 10 milhões de habitantes. Portanto, na área que sobra do Amazonas caberiam mais de 25 Bélgicas. Isto é terra pra dedéu, Bebel!

Nacionalismo jacarelógico

Portanto, é falso afirmar que as terras hoje ocupadas pelos povos indígenas são responsáveis pela pouca terra destinada à população amazonense, da mesma forma que é falso acreditar que tudo aquilo que não é território indígena, é “propriedade do povo”. Basta acompanhar o noticiário dos jornais de Manaus, que registram as invasões dos milhares de sem-terra e sem-teto, que não possuem sequer um metro quadrado para construir uma casa, não é mesmo, irmã Helena?

Se o povo amazonense está lutando por um pedacinho de chão, cabe perguntar quem, então, se apoderou de terras que não são ocupadas pelos índios. Quem? Quem?

O Dossiê Amazônia publicado pelo IBASE, em 1984, registra que os latifúndios ocupam 93% da área cadastrada no Estado do Amazonas.  Desta forma, 93% da área está nas mãos de 13% dos proprietários.

A geógrafa Irene Garrido explica como se deu esse processo de apropriação. Os minerais estratégicos provocaram uma desenfreada corrida das corporações internacionais, que criaram poderosas empresas de pesquisa mineral. Só a Royal Dutch Shell fundou a Mineração Nhamundá, a Mineração Jauaperi, a Mineração Iriri, além de outras menos importantes.

Essas corporações requereram e obtiveram centenas de áreas de pesquisa mineral, na época em que Bebel era do Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM). O Amazonas foi entregue a multinacionais como a Shell, a Saint Joe Minerais, a Saint Gobain, a International Nickel, a Brascan, a United States Steel, a Alcan, a Nippon Steel e às Paranapanemas e Tabocas de vida alegre e desregrada.

Veja só, leitor (a), uma minoria de 13% de multinacionais – que não necessitam de área de perambulação – são as verdadeiras donas da Amazônia. Só não conseguiram ocupar ainda o território onde os índios resistem. Daí se explica toda essa campanha anti-indígena, que não está destinada a defender “o povo amazonense”, mas a facilitar a penetração dos trustes internacionais. Os índios, constituem, na realidade, uma muralha contra as corporação e em defesa do meio-ambiente. Confere, Bebel?

Como conclusão, o nacionalismo jacarelógico de igarapé dirigido contra os oprimidos e os humilhados, ou é produto de má-fé em defesa dos interesses escusos das multinacionais ou é resultado de uma santa ignorância, que interpreta as culturas indígenas com o código equivocado. Nos dois casos, confunde a opinião pública. Ok, Bebel das Tabocas?

Notas

Bixa Orellana

O artigo Da Bixa Orellana ao Capa Homem omitiu por desconhecimento nosso o livro Plantas Medicinais Nativas e Aclimatadas da Região Amazônica de autoria do professor Paulo Roberto Castro da Costa, que acaba de ser publicado pela Universidade do Amazonas. Um exemplar nos foi enviado agora reitor Marcus Barros. O livro é graficamente atraente. A UA e seu autor, o pesquisador Paulo Roberto, conhecido no bairro de Aparecida como Paulo Bacurau, merecem os parabéns. Nossos rivais, os bucheiros de São Raimundo que me perdoem, mas foi mais um gol do bairro dos Tocos.

Cadê, cadê?

O governador do Pará Jader Barbalho, em depoimento à CPI, jura que na área de Nhamundá, do lado paraense, os poucos jacarés existentes estão nadando de costas. Ele quer ver sua mãe mortinha no inferno se isto não for verdade. A expedição da UA, que se deslocou até lá, quer que Santa Luzia cegue todos os seus integrantes se existir superpopulação do lado amazonense. Afinal, onde estão os jacarés? Cadê, cadê?

Na Assembleia

É isso aí. Os jacarés estão presentes nos discursos de alguns deputados estaduais que, numa sessão da Assembleia Legislativa do Amazonas deram um show de besteiras no último dia 24. Quem nos salvou foi o deputado Eron Bezerra, que colocou os pingos nos “is”, Mas a Beth Suely – meu Deus do céu – reagiu gritando para Eron:

- Bota o dedo dentro da água, bota, prá ver se tu não levas uma mordida.

Eraste. Eu, hein, maninha! Eron, meu comandante, não fique com medo. Bota o dedo, que eu garanto que só vai molhar. Nada mais.

Cegonha de igarapé

Em Feira de Santana, na Bahia, um grupo secreto de quatro mulheres ricas, apelidadas de “cegonhas noturnas”, distribuem crianças órfãs recém-nascidas pelas portas das casas de família de maior poder aquisitivo. Em Manaus, as cegonhas de igarapé, cobertas também por um véu de mistérios, distribuem jacarés em pontos estratégicos como o chafariz da Matriz, a Escadaria dos Remédios e a av. Djalma Batista. A exemplo do que ocorre no interior baiano, os elementos que compõem o grupo das cegonhas são muito conhecidos nos chamados “círculos sociais” e nas rodas políticas.

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