. Muitos anos depois, tomando tacacá na banca da dona Adalgiza, na Praça da Polícia, Zé Parel haveria de recordar aquela tarde remota do dia 22 de agosto de 1991, quando o deputado Euler Ribeiro (PMDB) pronunciou, com coragem e destemor, a frase histórica, que ecoou pomposamente por todo o Congresso Nacional:
- Entre o caboclo e o jacaré, que mutila e mata, estarei sempre ao lado do caboclo.
Macho pacas! O “general” Euler não falava “caboco”, como nós. A lembrança de seu grito de guerra ofuscou Zé Parel, que deixou cair dentro da cuia o palitinho, quando tentava pescar a folha de jambu e o camarão.
O brado retumbante, que marcou o início oficial da Guerra ao Jacaré (1991-1995), foi gravado para a posteridade num monumento de bronze erguido na Praça Heliodoro Balbi, em Manaus. A estátua devia ser equestre, mas como no Amazonas montaria não é cavalo, o busto do “comandante” Euler Ribeiro cavalgava a popa de uma canoa em cima do pedestal. Só o busto, para rememorar que o corpo havia sido decepado por um jacaré na batalha do Corocoró, em setembro de 1994, quando Euler batalhava por uns votinhos no baixo Amazonas.
Os documentos oficiais consultados posteriormente revelaram que tudo começou quando a agricultora Zilda Machado, 56 anos, foi atacada na tarde de 20 de agosto de 1991 por um jacaré-açu de cinco metros na localidade de Urucuri, em Nhamundá. Ela não usou o machado que carrega no nome, mas resistiu, dando uns cascudos com o remo na cabeça do monstruoso réptil que, acovardado, fugiu. Comunicou o fato ao chefe do escritório do governo do Amazonas em Nhamundá, o “capitão” Rommel Rodrigues.
Estopim da guerra
Isso foi o suficiente para que as autoridades declarassem o estado de “alerta geral”, que marcou o início da guerra. O fato explorado politicamente teve a dimensão do assassinato, em Sarajevo, do arquiduque Francisco Ferdinando e da duquesa Sofia, que foi o estopim da primeira Guerra Mundial de 1914. O governador Gilberto Mestrinho mobilizou as tropas da PM, com o objetivo declarado de exterminar os 2.000.000 milhões de jacarés que – dizque – infestavam as margens plácidas dos igarapés amazônicos.
O jacaré passou a ser um “caso de polícia”. O “comandante” Euler Ribeiro, que se encontrava em Brasília deitado eternamente em berço esplêndido, foi logo convocado para a guerra devido à sua dupla experiência bélica, uma mais recente e a outra dos tempos da sua infância.
Ele era um sobrevivente da famosa “Batalha do Igarapé de Manaus” (1983), quando ao lado de 1.500 indefesos policiais enfrentou uma horda beligerante de 150 professores enfurecidos, armados até os dentes com panfletos e com um documento reivindicando reajuste salarial.
Por outro lado, Euler acumulara, ainda criança, notável habilidade na luta contra os répteis, combatendo-os sem trégua, chegando a matar com baladeira e arrebite mais de 300 calangos, sem contar que trucidou com as próprias mãos 623 osgas, bribas e lagartixas habitantes do teto de sua casa.
Espelhando-se na coragem suicida do presidente da Rússia, Boris Yeltsin, que enfrentou o cerco dos tanques golpistas ao Parlamento Russo, o bravo “comandante” Euler Ribeiro furou o bloqueio dos jacarés do lago Paranoá ao Congresso Nacional e marchou para Manaus. No aeroporto local, voltou a pronunciar a frase histórica sob os aplausos de turistas embasbacados com as malas entupidas de produtos da Zona Franca. Em seguida, alistou-se no 1º Batalhão da PM. A guerra começara.
Saldos da guerra
Muitos e muitos anos depois, no ano 2041, quando Mikhail Gorbatchev Júnior viera para inaugurar o Centro de Saúde da Japiinlândia batizado com o nome de seu pai, um jornalista de Manaus lhe perguntou, com muita intimidade, numa mesa do Biquinha, o bar do Armando Neto, na praça São Sebastião:
- Escuta aqui, Juninho, diz só pra mim: se teu pai, que viveu naquela época, estivesse no lugar do “comandante” Euler Ribeiro, entre o jacaré e o caboco, quem escolheria? Teria ele a audácia e a coragem de estar sempre ao lado do caboco?
- Net. Nikogda. Nunquinha. Meu pai era corajoso, enfrentou tanques, mas essa coragem histórica que Euler teve para enfrentar jacaré, o velho Gorba não teria – confessou o Gorba Junior.
Muitos anos depois, no ano 2041, historiadores da UPA – Universidade Privatizada do Amazonas (ex-UA), decidiram pesquisar sobre a Guerra do Jacaré na perspectiva da visão dos vencidos. Não foi fácil. Parte da documentação foi queimada para apagar a memória. Mas encontraram nos Anais do Congresso Nacional que a frase do “comandante” Euler havia sido adulterada. O que ele dissera verdadeiramente foi:
- Entre o jacaré, que não tem título de eleitor, mas tem pele para exportar, e o caboclo, cuja pele não serve para nada, mas que pode votar e eleger seu representante, estarei sempre ao lado do caboclo.
Foi assim que Euler se tornou a estrela da guerra. Infeliz do povo que fabrica os heróis que precisa?
Os historiadores descobriram ainda que a Guerra do Jacaré, terminada no dia 23 de março de 1995 (por isso a Djalma Batista teve o nome trocado para Avenida 23 de Março e não por ser o aniversário da dona Elisa) deixou como saldo:
- Dois soldados da PM com arranhões no braço.
- Uma mordida na região glútea do “comandante” Euler que, por isso, foi condecorado como herói municipal com a Medalha da Osga.
- Toda a população réptil de Nhamundá foi exterminada, num total de 1.325 jacarés, segundo o Censo Jacarelógico e não 2.000.000 como havia sido falsamente anunciado no início do conflito pelo governador Mestrinho.
- Igual quantidade de couro de jacaré foi exportado para o exterior.
- Uma população atônita de cabocos com cólera e diarreia, que não estava entendendo nada do que acontecia.
- Duas mil crônicas do Taquiprati publicadas durante os quatro anos do conflito bélico, porque – olha só, maninha! - enquanto esses caras continuarem falando besteiras para usufruírem politicamente, a gente vai continuar aqui, nessa página, vigilante, protestando contra a afronta que fazem à nossa inteligência. Não cessaremos de gozar a caveira deles. Topas?
NOTAS
Verborreia
Entre o deputado Euler Ribeiro que, quando secretário de Saúde do Estado do Amazonas (1984-1988), mutilou o orçamento da SESAU e a Tânia Munhoz, presidente do IBAMA, nós – eu e muitos leitores – estaremos sempre em defesa do jacaré.
Camiseta
Um passarinho do IBAMA me contou que na próxima sexta-feira, 6 de setembro, Fernando Collor – o Quinho – vai descer a rampa do Palácio do Planalto com esta frase impressa em sua camisa: “Não é só o cachorro do Magri. Jacaré também é um ser humano”. A camiseta lhe foi oferecida pela Associação dos Maiores Amigos do Jacaré (AMAJACA).
Entrando na Faca
Depois de intensa campanha difamatória veiculada pela mídia, os jacarés conseguiram restabelecer sua imagem perante a sociedade amazonense. Graças ao trabalho incessante da AMAJACA, os répteis se filiaram a uma instituição cultural e entraram na FACA – Fundação das Artes e Culturas da Amazônia – criada recentemente por Jeff Amazonas para, entre outras ações, defender o meio-ambiente, os bichos, as plantas, os rios. Afinal, jacaré também é cultura.
Onça
Onça e Jacaré unidos jamais serão vencidos. Deu na Folha de São Paulo: o agricultor Waldecyr, 25 anos, atacado por uma onça no município de Apuí, foi atendido no Hospital dos Acidentados. A PM já está de prontidão. O Luis Nicolau também. O Nicolau-lau-lau, bate-perna, bate-pau, quem quiser fazer o mau, vá falar com o Nicolau. Não foi feito ainda o recenseamento demográfico de quantas onças existem na floresta amazônica.
Saúva
Uma saúva deu uma fisgada ontem no bumbum de Daniela Ponciano, 2 anos, enquanto brincava na calçada da casa da avó no Beco da Bosta, bairro de Aparecida. A PM entrou de prontidão contra o Exército das Saúvas.
Frase
O general Thaumaturgo Sotero Vaz, chefe do Estado Maior do Comando Militar, declarou à Folha de São Paulo (28/08/91), referindo-se a François Mitterand, presidente da França e ao senador americano Ted Kennedy:
- Se esses babacas tentarem entrar na Amazônia, vamos cair de porrada neles.
Assim mesmo. Por motivo de segurança (pessoal, não nacional) deixamos de comentar a frase e de dizer quem é o babaca nessa história.
Mosquito
A PM entrou em estado de trinta-e-um-alerta porque um mosquito zumbiu na orelha de um caboclo de Nhamundá.
O outro Euler
P.S - Esta crônica, com publicação impressa em 1991, só foi digitada e postada no blog em outubro de 2024. A bem da verdade, é preciso dizer que Euler abandonou a política e passou a fazer um trabalho profissional sério, com muito desprendimento, na Universidade da Terceira Idade (UNATI) – segundo me informou o médico Renato Veras, da Uerj, em quem confio. Foi o melhor que Euler fez. A crônica fica aqui como memória.