- Miguel, tu ainda toca pandeiro?
A pergunta feita pelo Getulhão, frentista de um posto de gasolina em Cascadura, Rio de Janeiro, pegou de surpresa o motorista do Dauphine verde claro, zerinho, que parou ali para abastecer. Podia ser um dia qualquer, de um mês qualquer, mas o ano, com certeza, era 1960, como indica a marca do carro. O motorista interpelado abriu a porta e, enquanto tentava se lembrar de onde conhecia aquele negão que o chamara pelo nome, disse para ganhar tempo:
- Desculpa! Não ouvi direito!
O frentista abriu um sorriso que mostrava a ausência de vários dentes na ‘comissão de frente’, encurvou a mão direita na forma de concha e, com as pontas dos dedos abertos, começou a dar chicotadas em uma lata de óleo vazia que trazia na mão esquerda, produzindo diversos timbres e um bom suingue. Seus dedos descontraídos voavam sobre aquele pandeiro improvisado no momento em que repetiu a pergunta:
- Me diz, Miguel, tu ainda toca pandeiro?
O rosto de Miguel se iluminou com aquela batida:
- Louriiiinho! Há quanto tempo!
Os dois se abraçaram, comovidos. ‘Lourinho’ era o apelido do Getulhão, um amigo de infância, no final dos anos 30, lá na parte mais pobre do bairro popular de Engenheiro Leal, Zona Norte do Rio, onde, juntos, tocavam pandeiro. Fazia uns vinte anos que não se viam. Lembraram os velhos tempos, indagaram sobre o destino de outros amigos dispersos, trocaram informações, riram, mataram a saudade. Se, como disse alguém “minha pátria é minha infância”, aquele era um encontro de exilados.
‘Leite Glória’
Getulhão manifestou seu orgulho de ter um amigo doutor. É que daquele grupo, ninguém estudou. O único que continuou respondendo presente à chamada na escola foi o aluno Miguel Lanzellotti Baldez, nascido em 24 de fevereiro de 1930, filho de Coryntho Silveira Baldez, um autodidata que aprendeu o ofício de topógrafo, e de Maria Luiza Carmela Lanzellotti Baldez, uma imigrante italiana, que deixou o meio rural para trabalhar como operária em uma fábrica de calçados.
O pai e a mãe ralaram para que Miguel se formasse em Direito pela Faculdade de Ciências Jurídicas do Rio de Janeiro, em 1955. Cinco anos depois, já estava atuando como advogado no Escritório de Luiz Machado Guimarães. Com os honorários recebidos na primeira grande causa, deixou de andar de ônibus. Comprou um carro do ano, que tinha volante de alumínio polido com três raios e motor traseiro.
O Dauphine, primeiro carro de passeio fabricado no Brasil pela Willys-Overland durante a euforia do governo JK, era concorrente do fusquinha. Depois, adquiriu má fama, quando descobriram que capotava facilmente. Por causa de sua suspensão, foi apelidado de ‘aerocapotable’ ou ‘Leite Glória’, o leite em pó instantâneo cujo slogan anunciava: “desmancha sem bater”. Era um carro econômico, popular, de baixo custo.
Mas não foi isso que Getulhão viu, quando terminou de encher o tanque. O que ele viu – e não escondia sua alegria - foi seu amigo de infância, vizinho da mesma rua, agora doutor, que havia estudado por todos eles e se tornara proprietário de conhecimentos e de um carro do ano, bens que poucos brasileiros, na época, podiam ter. Com uma estopa, Getulhão acariciava a carroceria reluzente, contente, como se todo o bairro de Engenheiro Leal, através de Miguel, estivesse pilotando o Dauphine.
- Miguel, tu ainda toca pandeiro?
A retórica da pergunta pressupunha uma afirmação de intimidade, de compartilhamento: se tu tocas pandeiro, eu te conheço, tu me conheces, somos amigos que tocam pandeiro e um deles é bacharel e possui um Dauphine. Chegando em casa, Getulhão era bem capaz de dizer displicentemente à sua mulher: - Lembra do Miguel? A gente tocava pandeiro juntos. Ele agora é doutor. Qualquer dia desses dou uma volta de Dauphine com ele.
O flautista
Mas dentro da pergunta, carregada de símbolos, estavam embutidas várias metáforas. O pandeiro não era um simples pandeiro, tinha outros significados, incluindo o entusiasmo pela vida e o compromisso social. Era como se dissesse: Miguel, tu continuas alegre e musical? Miguel, mesmo motorizado, tu ainda estás do lado de cá? Nessa última, estava implícito um apelo: não deixa de tocar pandeiro, fica com a gente, Miguel!
Miguel ficou, alegre, tocando pandeiro vida afora, sem negar as origens. Inconformado com a injustiça social, desde sempre, se engajou nas lutas populares. Com a renúncia do Jânio, em 1961, foi pras ruas lutar pela posse de Jango, ajudando na construção da greve geral. Vinculou-se ao CGT – Comando Geral dos Trabalhadores, e ao sindicato dos portuários. O velho Coryntho dizia: “você é comunista, mas ainda não sabe”.
Em 1963, Miguel fez concurso público e se tornou Procurador do Estado do Rio de Janeiro. Depois do golpe militar, participou da resistência à ditadura, lutando em várias trincheiras, inclusive na formação de novos advogados. Desde 1967 é professor titular de Direito Processual Civil da Faculdade de Direito Cândido Mendes, cujo dono não sabe tocar pandeiro e, agora, decidiu persegui-lo por haver denunciado as condições de trabalho na instituição.
A partir de 1982, o pandeiro de Miguel tocou na organização do Núcleo de Regularização de Loteamentos Clandestinos e Irregulares da Procuradoria Geral do Estado, que era uma demanda das comunidades excluídas da cidade do Rio. Teve atuação decisiva na demarcação das terras dos Guarani da aldeia Sapukai em Angra dos Reis. De lá para cá, continua tocando para os movimentos de luta pela terra, tanto urbanos como rurais, que ele assessora, afinado com palestras, conferências, cursos e textos publicados, entre outros temas, sobre o direito insurgente, a questão agrária e a história da propriedade no Brasil.
Ali, onde tem alguém sofrendo, ali, esse amante da justiça está tocando seu pandeiro, como no Fórum de Luta Pela Vida e Contra a Violência, criado na Baixada Fluminense e cidades serranas, onde o conheci no final dos anos 80, ou no Curso de Direito Social da UERJ, que ele coordenou, junto com o desembargador Sérgio Verani e a psicóloga Esther Arantes.
Numa carona de carro – não era o Dauphine – a Campo Grande (RJ), onde participamos de uma mesa-redonda, Miguel Baldez lembrou essa história. Já faz tempo. Mas ela me tocou. Guardei na memória o essencial e preenchi as lacunas com o tempero da imaginação. Decidi escrevê-la agora, para daqui, das páginas do Diário do Amazonas, render homenagem a esse Lanzellotti, primeiro cavaleiro da Távola Redonda, que nessa semana completa 80 anos tocando pandeiro. Ainda.
Esse infatigável tocador de pandeiro se assemelha àquele flautista medieval da canção de Georges Brassens, de origem humilde, cuja música era tão refinada que o rei tentou comprá-lo com títulos de nobreza, emblema, brasão, escudo, honrarias, glória, castelo com fosso e muralha. No final, “o flautista, modesto jogral / disse um sonoro não ao castelo feudal / Agora, nenhum camponês diz / que o flautista traiu sua raiz / E Deus reconhece como filho seu / aquele bardo que não se rendeu”. Como o bardo, esse Baldez também não se rendeu. Que Deus o abençôe!
O FLAUTISTA [i]
versão da música de Geoges Brassens por José Ribamar Bessa Freire
I
O tocador de flauta, modesto jogral,
levou sua música ao castelo feudal.
Maravilhado com tão bela canção,
o rei lhe ofereceu emblema e brasão.
Majestade - disse o flautista pobre -
não quero ser fidalgo nem nobre.
Com um brasão em minha melodia,
meu do-re-mi ficaria com afonia.
Meus conterrâneos diriam de repente:
- nosso flautista traiu sua gente.
II
Não iria mais querer acender vela
pros santinhos da nossa capela.
Eu só rezaria – que vexame! -
lá na Catedral de Notre Dame.
No campanário da nossa igrejinha,
o sino de bronze viraria campainha.
Com um bispo na minha clave de sol,
eu desafinaria sustenido e bemol.
E todo mundo falaria: - você viu?
Nosso tocador de flauta nos traiu.
III
Trocaria minha cabana de palha
por castelo com fosso e muralha
E o quartinho onde durmo feliz
Pelos aposentos da imperatriz.
No lugar do colchão de capim,
Leito de seda, renda e cetim.
Com um castelo na pauta musical,
minha toada soaria artificial.
Os camponeses diriam de novo:
- o flautista traiu o seu povo.
IV
Teria vergonha de meus ancestrais,
de minhas origens e de meus pais.
Falsearia uma linhagem aristocrática
com árvore genealógica emblemática.
Repudiaria o sangue de minha veia.
Renegaria o povo de minha aldeia.
Com um sangue azul tão dissonante
minha cantiga se tornaria pedante.
E os aldeões diriam com lucidez:
- o flautista nos traiu outra vez
V
Um duque, um conde, um marquês,
não podem ter um filho camponês.
Não me permitiriam casar por amor
com minha amada, botão em flor.
Meu casamento seria uma barganha
com a filha do rei da Espanha.
Com uma princesa na minha modinha,
meus versos só louvariam a rainha.
Plebeus e servos diriam: - no fundo,
o flautista traiu o nosso mundo.
VI
Foi então que o flautista, humilde jogral,
Disse ‘NÃO’ ao castelo feudal.
Sem escudos, honrarias e glória,
retornou ao lugar da memória:
choupana, aldeia, campanário,
família, afetos, relicário.
Agora nenhum aldeão diz
que o flautista traiu sua raiz
E Deus reconhece como filho seu
aquele bardo que não se rendeu.
[1] Versão livre do ‘Le petit joueur de flûteau’.
Le petit joueur de flûteau
Georges Brassens
Le petit joueur de flûteau
Menait la musique au château
Pour la grâce de ses chansons
Le roi lui offrit un blason
Je ne veux pas être noble
Répondit le croque-note
Avec un blason à la clé
Mon la se mettrait à gonfler
On dirait par tout le pays
Le joueur de flûte a trahi
II
Et mon pauvre petit clocher
Me semblerait trop bas perché
Je ne plierais plus les genoux
Devant le bon Dieu de chez nous
Il faudrait à ma grande âme
Tous les saints de Notre-Dame
Avec un évêque à la clé
Mon la se mettrait à gonfler
On dirait par tout le pays
Le joueur de flûte a trahi
III
Et la chambre où j'ai vu le jour
Me serait un triste séjour
Je quitterai mon lit mesquin
Pour une couche à baldaquin
Je changerais ma chaumière
Pour une gentilhommière
Avec un manoir à la clé
Mon la se mettrait à gonfler
On dirait par tout le pays
Le joueur de flûte a trahi
IV
Je serai honteux de mon sang
Des aïeux de qui je descends
On me verrait bouder dessus
La branche dont je suis issu
Je voudrais un magnifique
Arbre généalogique
Avec du sang bleu a la clé
Mon la se mettrait à gonfler
On dirait par tout le pays
Le joueur de flûte a trahi
V
Je ne voudrais plus épouser
Ma promise, ma fiancée
Je ne donnerais pas mon nom
A une quelconque Ninon
Il me faudrait pour compagne
La fille d'un grand d'Espagne
Avec un' princesse à la clé
Mon la se mettrait à gonfler
On dirait par tout le pays
Le joueur de flûte a trahi
VI
Le petit joueur de flûteau
Fit la révérence au château
Sans armoiries, sans parchemin
Sans gloire il se mit en chemin
Vers son clocher, sa chaumine
Ses parents et sa promise
Nul ne dise dans le pays
Le joueur de flûte a trahi
Et Dieu reconnaisse pour sien
Le brave petit musicien.