A universitária Valéria Silva, do Curso de Museologia, não esperou a aula terminar. Ali mesmo, na sala, diante de seus colegas, tirou um revólver da mochila e disparou um tiro certeiro nos cornos do professor de antropologia que caiu estrebuchando numa poça de sangue e saliva, sem largar o giz que segurava entre os dedos. “Ele falava demais” – ela disse ao reitor, a quem entregou a arma, ainda trêmula, as bochechas infladas, os olhos injetados, quase saltando das órbitas.
BALA CALA DOCENTE, berraram os jornais no dia seguinte, registrando depoimentos dos colegas de Valéria, que nunca escondeu seu ímpeto assassino, nem mesmo para os vizinhos do edifício em Botafogo onde mora:
- Um dia eu ainda mato esse ladrão de discurso, que sufoca a gente. Ele fala, fala, fala e não ouve ninguém. Não deixa aluno abrir a boca. Rouba a nossa voz, nos impõe um silêncio humilhante.
Colegas e vizinhos julgavam que era apenas uma forma exagerada de expressar seu descontentamento.E era, porque nesse relato, onde quase tudo é verdade - personagens, ‘ameaças’ de morte e até o domicílio em Botafogo - o desenlace fatal não aconteceu (ainda?) porque Valéria, por enquanto, não mata nem mosquito da dengue. O crime só foi aqui encenado para mostrar como a mídia está se lixando para os eventos acadêmicos. Uma aula, por mais excepcional que seja, jamais será notícia, a não ser que uma aluna fique nua dentro da sala ou use mini-saia como aquela estudante que causou o maior tumulto em uma faculdade de São Bernardo do Campo (SP). Mas aí, a notícia não é a aula.
Acabo de assistir a um evento acadêmico nessa quinta-feira, numa sala de aula em Niterói (RJ). A Universidade Federal Fluminense (UFF) pariu mais uma doutora. Maria do Socorro Pereira Leal, professora da Universidade Federal de Roraima, defendeu tese de doutorado no Curso de Pós Graduação em Letras. Ela analisou a disputa de terras no Brasil, a partir dos discursos dos fazendeiros, dos políticos e dos índios no processo de demarcação da terra indígena Raposa Serra do Sol (RR), destacando a cobertura on line de três jornais: Folha de Boa Vista, Folha de São Paulo e O Globo.
Análise do discurso
A maioria dos leitores de jornal está mais ou menos familiarizada com a Geografia, a Sociologia, a História, a Economia, a Antropologia, a Biologia e outras ciências, mas são ainda poucos os que conhecem uma disciplina chamada Análise do Discurso (AD), desenvolvida inicialmente na França, mas que hoje circula em todo o mundo, incluindo várias universidades brasileiras. A AD faz com a fala o que o microscópio faz com a célula: mostra aquilo que é invisível a olho nu.
Para isso, criou algumas técnicas que disseca o discurso das pessoas, entendendo por discurso qualquer produção da linguagem, desde o noticiário da televisão, o artigo de jornal, uma carta, um bate-papo, uma fofoca, enfim tudo aquilo que as pessoas falam ou escrevem, o que dizem e até o que deixam de dizer.
O analista do discurso é uma espécie de detetive da palavra, que descobre o sentido oculto de um texto ou daquilo que ele silencia, avaliando como o discurso faz sentido e como mudam as referências das palavras. ‘Morna’ não significa o mesmo em ‘a mamadeira está morna’ e ‘a cerveja está morna’. No primeiro caso alerta que o bebê pode beber, no segundo que o bebum não pode beber.
A tese de Socorro Leal, intitulada “Índios & brasileiros: posse da terra Brasilis nos discursos jornalístico on line, político e indígena” discute justamente os sentidos que os fazendeiros, os políticos e os índios dão a algumas palavras-símbolo como Lei, Nação, Família, Desenvolvimento, que aparentemente são auto-explicativas, mas que designam conceitos abstratos, cujo uso abusivo e estereotipado produz significados indeterminados.
A pesquisadora parte do princípio de que a língua está encharcada de história, de ideologia e mantém relação com o inconsciente. Seu fio condutor é a lei que reconhece como propriedade da União as terras onde vivem tradicionalmente os índios, garantindo a eles a posse e o usufruto permanente delas.
Por que se demarca a terra para os índios em vez de se demarcar para os outros, os não índios? Para responder essa pergunta, a autora começa analisando as manchetes sobre a homologação da Raposa Serra do Sol. Os títulos dos jornais estão direcionados a criar um consenso, tecendo uma unanimidade ao considerar a medida como uma “agressão à família roraimense”, “um obstáculo ao desenvolvimento do país” e “um atentado contra a nação brasileira, cuja soberania corre perigo”.
A menção à soberania nacional é retomada do discurso de certos setores militares, que consideram a demarcação das terras indígenas como “a criação de nações dentro de outra nação”. Este discurso acusatório exclui os índios da brasilidade e omite qualquer referência à legalidade constitucional que reconhece os direitos dos índios.
Na contramão,“há um silenciamento imposto aos índios, o direito à palavra e à voz lhes é negado”, suas declarações não são registradas no discurso jornalístico, não são entrevistados para defender o que pensam e abrir o contraditório. Nenhuma manchete foi encontrada, apontando a importância do reconhecimento dos direitos índios para o Brasil. Ao invés disso, diz-se da ‘ilegalidade’, dos ‘prejuízos’ e dos ‘efeitos péssimos para a agricultura’ que são causados pela demarcação. O argumento que levanta não só exclui as atividades da lavoura indígena como legítimas, mas as qualifica como danosas aos ‘interesses nacionais’.
A autora mostra como até mesmo as manchetes soltas, sem relação com a disputa pelas terras, projetam um discurso nacionalistóide: “o Brasil é dos brasileiros”. A tese de que “os índios não são brasileiros” vem justificar o princípio econômico de que a terra é uma mercadoria, cuja propriedade é caracterizada pela aquisição. Quem não compra, não pode tê-la.
Sem família
A pesquisadora questiona ainda o funcionamento de um termo como ‘família’, recorrente nas manchetes dos jornais no episódio da homologação da Raposa Serra do Sol. Os sentidos evocados apelam para valores morais e políticos que em princípio, fazem parte do repertório de qualquer leitor.
Esses sentidos de família se atualizam no contexto da expulsão determinada pela Justiça daqueles que ocuparam ilegalmente as terras indígenas. Assim, os títulos dos jornais constroem uma relação exclusiva entre esse termo e a brasilidade: “as famílias de brasileiros não têm onde morar”, “cerca de 300 famílias terão que deixar a terra” ou “senador afirma que instituições não podem expulsar famílias da reserva”.
Não há uma única manchete que anuncie como as ‘famílias’ indígenas foram beneficiadas – escreve Socorro Leal, esclarecendo que isso não pode ser explicado como simples coincidência do dizer.
De que ‘família’ se diz, quando se anuncia a terra sendo disputada entre índios e brasileiros? Quais as implicações de o jornalismo poder apontar sentidos de forma que os índios ficam fora da ‘família’? – indaga a autora. Não há nada que aponte para outra forma de organização. O núcleo de organização social mínimo dos índios é qualificado como fora da norma, não constituindo uma família. Um dos principais efeitos de sentidos é o peso negativo dessa exclusão para os índios.
O conceito de ‘desenvolvimento’ e como ele vai sendo discursivamente construído também tem um lugar de destaque. A tese analisa os sentidos que o termo adquire nos documentos dos fazendeiros e dos políticos, que vêem no reconhecimento dos direitos indígenas por parte do Governo Federal um “obstáculo de ordem legal, administrativa e política”, ou ainda “óbices e entraves” ao desenvolvimento definido como produção de riquezas e geração de renda. A relação deste discurso como meio ambiente, quando aparece nos documentos dos políticos e dos arrozeiros, esvazia e despolitiza a reivindicação dos índios.
A voz dos índios
A tese procura, finalmente, analisar o discurso dos índios, que apresenta diversas formas de resistência ao discurso SOBRE os índios. Para isso, a pesquisadora trabalha com as cartas aprovadas no final de cada Assembleia dos Povos Indígenas de Roraima, realizadas entre 2003 e 2010, e endereçadas às autoridades brasileiras. O processo de autoria coletiva desses documentos começa nas assembleias que se prolongam por um mínimo de quatro dias e contam com a participação de setecentos índios em média.
A partir de 2005, o vocábulo ‘desenvolvimento’ - diz Socorro Leal – passou a integrar o léxico das cartas indígenas analisadas, mas elas explicitam outro sentido, como no discurso de Davi Yanomami, que faz uma crítica contundente aos projetos econômicos do Estado e uma defesa do etnodesenvolvimento:
“A terra floresta só pode morrer se for destruída pelos brancos. Então, os riachos sumirão, a terra ficará friável, as árvores secarão e as pedras das montanhas racharão com o calor. Os espíritos xapiripé que moram nas serras e ficam brincando na floresta acabarão fugindo. Seus pais, os xamãs, não poderão mais deter as fumaças-epidemias e os seres maléficos que nos adoecem. Assim todos morrerão”.
Historicamente, os índios têm uma presença física no Estado, mas estão fora de suas fronteiras discursivas, apagados como cidadãos. Eles permaneceram mudos, com uma cidadania surda, incompleta e até mesmo impossibilitada, sem direito lingüístico de resposta.
“Em nossa sociedade, os índios ou quaisquer outros que falem uma língua que não a portuguesa não existem no Brasil enquanto seres falantes” – escreve Socorro, apoiada em Eduardo Guimarães que estudou o processo de constituição da língua nacional no Brasil. É que depois da Constituição de 1988, o Estado até que reconhece a existência das línguas indígenas, mas lá, dentro das aldeias. O Estado só escuta se eles falarem português, até mesmo para entrar com um processo na justiça, reivindicando seus direitos.
“O silêncio do mundo indígena, sem dúvida alguma, é um dos maiores dramas da humanidade” diz a autora, citando Le Clézio. Esse silêncio começa, agora, a ser rompido. A tese de Socorro Leal nos ajuda a entender o que está nas entrelinhas dos diferentes discursos e contribui para o conhecimento do Brasil contemporâneo.