Tinha 87 anos, 60 dos quais dedicados ao jornalismo esportivo. Despediu-se há duas semanas, deixando na orfandade uma legião de leitores fiéis que o seguiam, com fidelidade canina, a cada domingo, religiosamente, como quem vai a missa. Abríamos sempre o jornal no caderno de esporte e, antes de qualquer coisa, líamos a coluna Baú Velho. Quando Carlos Zamith, escritor, colecionador e guardião da memória do futebol no Amazonas mudava de jornal, a gente não queria nem saber: ia atrás dele.
É que no Baú Velho, a gente encontrava um pouco de tudo. Lá estavam as tardes mornas de domingo no Parque Amazonense: vestiário, gramado, bola, chuteira, jogadas sensacionais, arquibancada, gritos da torcida, alegria, sofrimento. O mundo cabia no Beco do Macedo, "o mundo todo girando, rodando e rebolando, o mundo todo, inteirinho, amassado, sacudido, debaixo dos pés do time", como canta o poeta Farias de Carvalho.
Numa partida de futebol, o que podia estar em jogo era o destino da humanidade. Lá, dentro do Baú, cabiam a vida borbulhante da cidade, o bonde da Praça da Saudade, a pracinha da Estação, o velho cais, os casais de namorados, as conversas na banca de tacacá nos domingos coloridos, as duas mãos do poeta e o sentimento do mundo.
Quem diz que o brasileiro não tem memória é porque jamais presenciou acaloradas discussões nas esquinas das cidades brasileiras ou na banca de tacacá da dona Alvina, onde Zé Buchinho e Petel recordavam cada lance daquele clássico Rio Negro x Nacional disputado no tempo do finado puta-merda, avaliando décadas depois qual o gol mais bonito: se o do Dermilson ou o do Thomaz Passa-Fome. Ou quando o Nacional, com gol de Pepeta, derrotou o Flamengo do Rio por 1 x 0 levando alegria ao coração dos vascaínos.
O colecionador
Sempre me intrigou como os apaixonados por futebol não esquecem detalhes de uma antiga partida, firulas de um drible, erros de arbitragem. O Brasil seria outro se os trabalhadores lembrassem de greves, da luta pela jornada de oito horas e de seus líderes sindicais com igual fervor e paixão.
Essa mesma paixão encontrada na memória oral da banca de tacacá está presente no Baú Velho de Carlos Zamith, que bate um bolão, "mexendo papéis antigos" para desenhar "um mapa de sonhos", como naquele outro baú do poeta. Ele era um colecionador nato que arquivou jornais, revistas, artigos, fotos, charges, e foi identificando e classificando esse material, criando uma espécie de museu do futebol amazonense. O Baú Velho se tornou um lugar de memória da nossa cultura popular.
O acervo do Baú formado pela coleção pessoal de Carlos Zamith foi enriquecido por pesquisas que realizou em jornais antigos da hemeroteca do Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas e da Biblioteca Pública. Ele foi anotando tudo em cadernos amarelados, com devoção, com unção: campeonatos amazonenses, escalação dos times, arbitragem, renda, público, biografia e perfil dos jogadores. Organizou ainda narrativas orais que habitualmente só circulavam nas bancas de tacacá.
Aqui ele era imbatível. O desenho do perfil dos craques que faz é uma pintura, para ilustrar basta o exemplo do Boanerges, lateral do Nacional nos anos 1950. Quem o viu jogar e ainda por cima é nacionalino, como acontece com este locutor que vos fala, fica arrepiadinho. É pura emoção:
"(Boanerges) Nunca defendeu outro time a não ser o Nacional que era a sua vida desde garoto. Aprendeu a adorar a camisa da estrela azul solitária quando a sede ainda era na Rua Saldanha Marinho. Jogador raçudo, de boa impulsão, disposto a enfrentar qualquer jogada ríspida, firme na marcação, jogava mais com a perna esquerda e quando deixava o campo, com o rosto, de pele clara, bem avermelhada, demonstrava o esforço, sua luta pela camisa que vestia. Por tudo isso foi um ídolo da torcida nacionalina, porém esquecido, como sempre acontece no futebol".
Lugar de memória
A luta contra o esquecimento e contra outras armadilhas da memória é justamente um dos objetivos do Baú que ajudou a contar e a perpetuar histórias, colecionando, classificando e hierarquizando a informação. Não se trata apenas de uma recordação, mas de um processo de reconstrução da memória no qual Zamith foi um grande arquiteto na busca de eternizar os ídolos de nossa infância. Um reles escanteio, na pena de Zamith, ganhava contornos épicos, uma cabeçada bem dada lá no ninho da coruja tinha algo de heroico, de sublime.
O Baú não pode fechar, tem que continuar. Alguém tem que guardar para a posteridade a partida entre Nacional e Vasco da Gama pelas oitavas de final da Copa do Brasil no próximo dia 20 de agosto. Alguém tem que documentar o sofrimento dos vascaínos do Amazonas, que torcem pelo Nacional, divididos dramaticamente entre a Estrela Azul e a Cruz de Malta. Zamith, embora rionegrino e botafoguense, estará presente no coração do público neste dia no Estado do Sesi, no Coroado.
Leio agora neste Diário do Amazonas que o acervo do Baú Velho será tombado pelo Governo do Estado e vai ser musealizado, de acordo com proposta aprovada pela Assembleia Legislativa do Amazonas na semana passada. Deve ser abrigado no Museu de Numismática, localizado na Praça da Polícia. Os nomes dos deputados Marcelo Ramos (PSB) e José Ricardo Wendling (PT), que apoiam a proposta, podem constituir garantia de que o Museu não será mais uma instituição burocrática a serviço dos interesses particulares do Berinho, sempiterno secretário de Cultura.
O Baú Velho do Carlos Zamith pode se inspirar no Museu do Futebol de São Paulo, cujo curador Leonel Kaz vê o museu como "um lugar para se entrar de corpo inteiro, tridimensionalmente, com todos os sentidos despertos".
- Museu é lugar de entrar e dizer: é nosso! É lugar, portanto, de olhar de forma distinta para as coisas. E para os seres também. É lugar de aprender a olhar com outro olhar para o outro (que quase nunca vemos), para a escola (que pode ser, a cada dia, diferente do que é habitualmente) e para a cidade (que tanto desprezamos, porque parece não nos pertencer)" - escreve Leonel Kaz.
Ou na versão do cantador e repentista Ivanildo, citado na coluna de José Miguel Wisnik: "O museu é um saber / é remédio, é lenitivo / é um barco e é a arca / é gaveta e é arquivo / que lembra quem já morreu / e informa quem está vivo".
Nesta semana, o Rio está sediando a Conferência Geral do Conselho Internacional de Museus (ICOM). É um momento propício para declarar o Baú como lugar de memória do futebol e da expressão popular no Amazonas! Que se torne um centro de referência para historiadores, pesquisadores, jornalistas, estudantes e apaixonados pelo esporte! A Universidade Federal do Amazonas, cujo Laboratório de História da Imprensa gravou depoimento de Carlos Zamith, bem que poderia participar da construção do projeto.
Já faz algum tempo visitei Zamith em companhia do jornalista Jefferson Marques de Souza. Sua casa na Chapada havia sido alagada depois de uma chuvarada, quase comprometendo seus arquivos. Agora, a melhor forma de preservar seu acervo é zelar para que não fique submerso no esquecimento.
P.S. Com Zamith, compartilho dois sobrinhos queridos que me avisaram de sua despedida: Sandra e Amaro Júnior. A dona Terezinha Teixeira de Oliveira (esposa) e aos filhos Carlos Jr. Carlyle e Carlison, os sentimentos da coluna. (Fotos pirateadas de http://www.bauvelho.com.br )