Durante uma semana, de 16 a 22 de outubro, convivi com três índias em Canafé, no município de Santa Isabel (AM). Adelina Sampaio, Larissa Duarte e Adilma Lima participaram com mais 50 índios do II Curso de História Indígena no Médio e Alto Rio Negro. Elas são netas legítimas da Ye´pá-Bahuári-Mahsõ, a Avó do Mundo que criou o universo, tarefa realizada em outras mitologias por um Deus masculino, descartado no mito Tukano porque, sem útero, não pode fazer gentes. Aqui quem cria o mundo e gera os primeiros seres é uma entidade feminina. Faz sentido.
Como isso aconteceu? Foi assim. No princípio, o mundo não existia, só havia escuridão e o espaço vazio e triste, o espaço frio e sem ideias. Surge, então, a Ye´pá, dentro de uma nuvem branca, de brilho intenso, embalada por cantos sagrados. Ela vem dançando, abraçada pela música que, em forma de redemoinho de vento, acaricia-lhe o corpo, penetra sua carne, seus ossos e até seus pensamentos. Grávida de música, a Avó do Mundo cria a Casa da Terra, parindo as gentes e os primeiros seres, como conta Gabriel Gentil em Mito Tukano: Histórias proibidas do Começo do Mundo.
Podemos cantar porque todos nós, leitores - você, eu e até aqueles que ignoram isso - somos filhos da Música que fecundou a Avó do Mundo. Com muito mais razão, podem cantar as três índias, falantes de língua Tukano: Adelina, Dessana, 22 anos, da Comunidade Balaio; Larissa, Tukana, 19, de Taracuá; Adilma, Tariana, 33, de Iauareté. Neste curso organizado pela Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (FOIRN) e pelo Instituto Socioambiental (ISA), elas cantaram, fazendo intervenções oportunas sobre o papel da mulher nas lutas indígenas.
O curso do rio
O território indígena do Rio Negro abriga 30 mil olhos d'água e lá correm cerca de 100 rios e 1.000 igarapés. Lá vivem 50 mil netos da Avó do Mundo, distribuídos em 873 comunidades e sítios indígenas, segundo o Censo do IBGE de 2010. Uma dessas comunidades é Canafé, com 96 moradores. Foi lá, na Escola Yandé Putira - Nossa Flor - que aconteceu o curso de formação de liderança, cujos participantes, falando diferentes línguas e provenientes de diversos rios, foram selecionados por uma comissão. Eles se deslocaram à Canafé para seguir as duas etapas sequenciadas do curso.
Na primeira etapa, com o doutor Geraldo Pinheiro, ex-professor da Universidade Federal do Amazonas e pesquisador da Universidade do Porto (Portugal), abordamos a história da ocupação do Rio Negro desde tempos imemoriais, recorrendo à arqueologia e às narrativas míticas. Depois, apoiados em documentos de arquivos de Portugal e do Brasil e nos relatos de viajantes e missionários, discutimos a catástrofe demográfica do período colonial, a escravização de índios, a catequese e a resistência dos Manáos, Baré, Baniwa, Tukano e demais povos.
Destacamos ainda a história das línguas, a repressão aos idiomas indígenas, a expansão do Nheengatu, a introdução do português na região e a situação das línguas em contato. Na segunda etapa, a história do movimento indígena foi abordada por dois dirigentes: o líder histórico baré Braz França, ex-presidente da FOIRN (1990-1997) e o tukano Maximiliano Menezes, presidente da COIAB - Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira, ambos acompanhados por Marivelton Barroso, jovem liderança baré, atual diretor da FOIRN.
Foi um momento singular renovador de esperanças: os mais velhos transmitiram aos jovens as experiências de luta pela demarcação de terras e pela construção das organizações indígenas. Além disso, avaliaram os erros cometidos, analisaram as vitórias e as lições aprendidas, num curso que vai durar mais de um ano, com módulos temáticos realizados em São Gabriel e nas comunidades. A luta continua.
Direitos da mulher
Posto que uma mulher criou o mundo, as perguntas de Larissa, Adelina e Adilma giraram em torno do papel atual das mulheres na luta indígena. Maximiliano, Braz e Marivelton listaram nomes que se destacaram: Almerinda Lima, atual presidente da FOIRN, Joaquina Sarmento dos Santos, fundadora da entidade e outras diretoras da Foirn e de associações locais: Edina Trindade, Rosilene Pereira, Madalena Paiva, Cecília Albuquerque, Bibiana, Regina Duarte, Edinair Torres, Olimpia Melgueiro, Jacinta Sampaio, Carmen Figueiredo e tantas outras.
Todas elas enfrentaram desafios políticos e familiares para conciliar a militância com a criação dos filhos, os cuidados da roça, a confecção de artesanato de palha, tucum, cuias, cerâmica, os estudos, além de viagens para participar em reuniões, oficinas, encontros, assembleias.
Há um mês, em setembro, a Foirn, através do Departamento das Mulheres Indígenas do Rio Negro (DIMIRN), realizou em Santa Isabel uma oficina sobre os direitos da mulher indígena, quando 50 mulheres discutiram os problemas enfrentados nos três municípios e comunidades do Rio Negro. Na ocasião, a Coordenadora do DIMIRN Rosane Cruz, 23, Piratapuya, apresentou algumas estratégias de comunicação para que aquelas que vivem nas comunidades mais distantes conheçam seus direitos.
- "Traduzir as leis, como a da Maria da Penha nas línguas indígenas, pode ser uma forma de fazê-las conhecidas por todas as mulheres" - disse Rosane. Uma carta foi aprovada pelas participantes, endereçada aos prefeitos e Câmaras Municipais, exigindo a criação de estruturas de atendimento à mulher.
Essas foram algumas das respostas que encontraram no Curso as três jovens indígenas: Larissa Duarte, filha do líder Sebastião Duarte; Adelina Sampaio, sobrinha de Álvaro Tukano e Adilma Sodré, conselheira da Associação da Mulher Indígena de Iauareté.
É uma pena que Manaus, que comemora nesta semana 344 anos, não acompanhe de perto tais eventos. De costas para o Rio Negro, em cuja foz está localizada, com os olhos voltados para fora, Manaus, coitada, não sabe a quinhapira que está perdendo.
P.S. 1 - No curso, organizado por Marivelton (Foirn), Lirian Monteiro e Renato Martelli (ISA), estiveram presentes cursistas que não haviam sido selecionados: as mutucas. Segundo o filósofo Iñaki Gomeza, único uruguaio a participar do curso em Canafé, "la mutuca es una mosca con alma de mosquito". Ela parece, morfologicamente, com a mosca, mas se comporta agressivamente como se fosse carapanã ou muriçoca.
Os ataques do exército de mutucas, que mais pareciam voos não tripulados de drones assassinos enviados por Obama à Amazônia, foram compensados pelo carinho dos alunos, pela hospitalidade da Comunidade de Canafé, pelos banquetes de quinhapira preparados sob a coordenação de dona Suliete e pela peça teatral - O Casamento da Filha do Mapinguari - encenada sob a direção do Fidelis Baniwa, o ator que interpretou o índio Joe Caripuna na minisérie Mad Maria. Mutucas do Rio Negro! Eu voltarei cantando com Cidade Negra: "Se querem meu sangue, terão o meu sangue". Mas aviso que sairei no tapa.
Obs. Fotos de Geraldo Pinheiro.