Eu sou a água / que mata a sede /
onde eu não estiver / você se lembra de mim.
Aturi Kaiabi
O mundo inteiro, hoje, está lembrando dela pela falta que faz, até mesmo no Brasil que é dono de 16% dos rios do planeta. Os rios estão morrendo. Poluição, esgotos, desmatamento e a seca em dois verões consecutivos no Sul e Sudeste provocam escassez de água, já desaparecida de muitas torneiras de São Paulo. É grave a crise de abastecimento que há dias motivou o maior arranca-rabo entre dois governadores, porque um deles quer bombear o rio Paraíba do Sul, levando água do Rio de Janeiro para os reservatórios paulistas. Parece que chegou a hora da onça beber água.
A viabilidade do plano paulista está aguardando parecer técnico da Agência Nacional de Águas (ANA), já que o Paraíba do Sul, que banha três estados, é rio federal. Enquanto isso, a guerra verbal já fez sua primeira vítima: o governador Alckmin foi agraciado pelos cariocas com o título de "ladrão de água", neste sábado, 22 de março, quando se celebra o Dia Mundial da Água, criado pela ONU por decisão da Conferência Rio 92 para conscientizar sobre a necessidade de proteger rios, fontes e suprimentos de água potável. De lá para cá, muita água rolou embaixo da ponte.
A destruição dos recursos hídricos fez com que se começasse a buscar quem sempre manteve relação sadia com a natureza. O conhecimento dos índios, dos povos da floresta, dos ribeirinhos, dos quilombolas, dos caiçaras começou a ser olhado com interesse e respeito, sem preconceito epistemocêntrico. O legado deles mostra que águas passadas podem mover moinhos sim senhor. Um exemplo está no 'Livro das Águas', organizado por Maria Cristina Troncarelli, editado pelo Instituto Sociambiental (ISA) e escrito por professores indígenas do Parque do Xingu.
Livro das águas
- Nos meses de setembro e outubro, as cigarras cantam e os primeiros trovões anunciam a chegada das chuvas aos índios do Xingu, que se preparam para receber a água que cai do céu. Nos últimos anos, porém, esses sinais não são mais confiáveis. Os insetos não têm mais força para chamar a chuva. As cigarras cantam e cantam, o dia inteirinho, mas a chuva não vem.
Aturi está preocupado com os rios moribundos, cuja agonia já está provocando mudanças climáticas no Xingu, com repercussões sobre a fauna e a flora que levam à reelaboração dos conhecimentos sobre elas. Ele conta que o mutum, pássaro que era abundante no Parque Indígena, está desaparecendo: "Antes a gente ouvia o mutum cantar todas as noites. Agora ninguém mais ouve o canto deles. A jacutinga também era uma ave muito comum aqui, mas hoje ela sumiu". O desmatamento do entorno por fazendeiros e a construção de hidrelétricas mexe também com os peixes:
- Nós moramos na beira do rio. Nossa rua é o Rio Xingu, que é nossa vida Na piracema, os peixes sobem o rio para desovar em pequenos lagos. Os peixinhos ficam ali esperando o nível da água subir para voltar ao rio e crescer lá. Hoje, o rio demora tanto a subir que o lago seca e peixinhos acabam morrendo antes. É muito triste - lamenta Aturi.
A classificação das águas feita pelos Kaiabi já não é mais aquela que parece com a que foi cantada pela poeta amazonense Astrid Cabral:
Tem água cor de café,
tem água cor de cajá,
tem água cor de garapa,
tem água que nem guaraná.
Rios moribundos
![](http://www.taquiprati.com.br/images/%C3%81gua,%20P%C3%A1o%20Molhado%20no%20lixo.jpg)
O Rio Guandu recebe um bilhão de litros de esgoto doméstico. É cocô que não acaba mais. O esgoto doméstico não tratado, as atividades industriais à beira de rios, o uso de agrotóxicos, os produtos químicos lançados nas redes públicas de coleta de água, o lixo, o desmatamento, a erosão e a redução da faixa de preservação da mata ciliar prevista no Código Florestal - tudo isso mostra, como quer a poeta Astrid, que
A água doce
não é tão doce
antes fosse.
O professor guarani Marcos Moreira entrevistou o velho Alexandre Acosta, na aldeia de Jataity (RS) que definiu sua relação com a terra e com o rio:
- Esta terra que pisamos é o nosso irmão. É por isso que o Guarani respeita a terra, porque ela é também um Guarani. O Guarani não polui a água, pois a água é o sangue de um Karai. Esta terra tem vida, é uma pessoa, tem alma. A mata, por exemplo, quando um Guarani precisa cortar uma árvore pede licença, pois sabe que a árvore é uma pessoa que se transformou neste mundo. Esta terra aqui é nosso parente, mas é mais importante que nós. Por isso, nós falamos para as crianças respeitarem a terra, porque ela já foi um Karai e até hoje ela se movimenta, só que nós não percebemos.
O engenheiro Gilberto Menezes Moraes, um baiano arretado que é professor da UERJ e dá nó em pingo da dita cuja, conta que quando era professor da PUC, seu colega José Carlos Sussekind, ex-Secretário Extraordinário do governo Brizola, advertia que no futuro as guerras por água seriam uma constante. Agora, os kaiabi juram que as cigarras e os trovões já não anunciam as chuvas, que o mutum parou de cantar e que os peixes estão morrendo. O futuro chegou.
- Você já construiu o seu reservatório extra, no banheiro e na área de serviços? Faça. E cuidado com os ladrões de água - ironiza Gilberto, que nessas alturas faz a mesma pergunta de Yanin, outro poeta Kaiabi:
Quem vai segurar?
A água namora com a pedra / A pedra sempre feliz vai ficar /
A água corre no rio / e esse rio cai no mar / O ar segura o mundo
E o mundo segura o mar de novo / Os dois seguram os homens /
E os homens, será que vão segurar?