Índio não dá voto? Será que são os eleitores que se lixam para o destino dos índios e, desta forma, impõem silêncio aos candidatos a presidente? Perdemos a capacidade de nos solidarizar com quem necessita? Excetuando Marina Silva que reafirmou compromisso com os índios no debate da TV Globo, ninguém falou nada, nem lhes foi perguntado. Na formatação dos debates pela televisão os temas "índio" e "cultura" não constam sequer no sorteio de perguntas. O papelzinho não está no saco do William Bonner. Lá não há lugar para os índios que são invisibilizados e emudecidos.
Os candidatos perdem tempo precioso com abobrinhas ou ofensas pessoais e nada falam sobre política indigenista ou política cultural. Despolitizam o debate e deixam de educar o eleitor. Ficam calados em relação à Funai, que deveria ter independência (ou autonomia, tanto faz) para cumprir o que a Constituição estabelece e não ser tutelada, como é hoje, pela senadora Katia Abreu. Afinal, se não somos capazes de lutar pelos direitos das minorias, em que nos diferenciamos de Levy Fidelix? O Brasil sofre um processo de levyfidelixzação?
Será mesmo esse um tema menor? São quase 900 mil índios que vivem em 13% do território nacional e mantém vivas mais de 180 línguas depositárias de saberes milenares, narrativas, poesia, música, rituais. Podem participar, se tratados com respeito, simpatia e estima, na construção de um Brasil moderno, diverso e plural. Por que candidatos e partidos políticos nem seu souza?
Programa do PT
Uma agenda antiga que guardo me permite lembrar de uma segunda feira, 17 de dezembro de 1979, quando Lula recebeu no Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo a visita de dois amazonenses desconhecidos, que queriam discutir a fundação do PT. Um era Aloysio Nogueira; o outro era este locutor que vos fala, ambos dirigentes do movimento dos professores. Entregamos a Lula exemplares do Porantim - jornal do CIMI, com entrevista de Pedro Casaldáliga para quem "só o socialismo pode salvar os povos indígenas". Queríamos que o PT assumisse as lutas dos índios.
No encontro estadual do PT-AM, em 1980, foi aprovado documento escrito a quatro mãos por mim e por Márcio Souza intitulado "O PT e a questão indígena", que chegou a ter duas edições artesanais. As teses ai apresentadas foram discutidas, nesse mesmo ano, em São Paulo, em dois encontros nacionais: no Colégio Sion, em fevereiro, quando assinamos o manifesto; e no Instituto Sedes Sapientiae, em junho, quando votamos programa, estatuto e plano de ação do partido, que acabou incorporando, no seu último item, os pontos cruciais reivindicados pelos índios: a demarcação da terra e a autodeterminação dos povos indígenas.
A partir daí, a questão indígena aflorou em vários eventos nos quais participei, na qualidade de presidente do PT-Amazonas, cabendo destacar dois comícios que contaram com a presença do Lula. O primeiro, na noite de 27 de julho de 1980, em cima de um caminhão, em Brasiléia (Acre), no ato de protesto contra o assassinato de Wilson Pinheiro. O segundo, no dia 21 de agosto de 1985, no palanque armado na praça São Sebastião, para apoiar Aloysio Nogueira e Marilene Correa à Prefeitura de Manaus. Em ambos, houve destaque para as lutas indígenas.
Testemunhei o compromisso do PT com a questão indígena até mesmo fora do Brasil, na entrevista coletiva que Lula deu em janeiro de 1981, em Paris, na sede da Confederação Geral dos Trabalhadores. Participaram quase cem jornalistas do mundo inteiro, vários deles demonstrando grande interesse na relação do PT com os índios. Na maior cara-de-pau, entrei como correspondente na França do Porantim, o único jornal presente que a CGT desconhecia.
O registro de tais lembranças permite historicizar como o PT foi construindo sua visão sobre os índios. Desde sua fundação, aprovou em seu programa a defesa do patrimônio cultural de negros, índios e minorias, explicitando com clareza compromisso com a demarcação das terras indígenas. Nessa época, quem estava no PT era Marina Silva. Dilma era do PDT.
O PT construiu um discurso quando era oposição. A eleição de Lula despertou esperanças nas aldeias. Representantes de 220 etnias subiram simbolicamente a rampa do Palácio do Planalto, celebrando com antecipação o início de uma nova era na política.
Base aliada
No entanto, o discurso na oposição foi um e a prática no poder foi outra. A ambiguidade da política indigenista dos governos Lula e Dilma acabou favorecendo as forças que se opõem à demarcação das terras, forças que fazem parte da base aliada. Os direitos indígenas constituíram moeda de troca no cambalacho com a bancada ruralista. Os índios foram tratados como entrave ao progresso.
Decepcionados, num ato público numa praça de Manaus, os índios queimaram cópia do programa do PT. Para eles, a diferença entre Tomé de Souza, D. Pedro I e II, FHC, Lula e Dilma é muito pequena.
Nós, petistas, tivemos de engolir Sarney, Renan Calheiros, Maluf, Jader Barbalho, Collor, Kátia Abreu e essa enxundiosa base aliada com os 300 picaretas do Congresso Nacional. Mas todo sacrifício valeria a pena se ao menos a gente pudesse avançar em questões como a indígena e a ampliação dos direitos civis (aborto, casamento entre pessoas do mesmo sexo, etc). Não foi o caso. O PT entregou a rapadura aos tradicionais detentores do poder. Suspeito que governávamos mais quando éramos oposição.
Nesta campanha, há duas semanas, Marina Silva se reuniu em Brasília com líderes indígenas, quando reafirmou publicamente seu compromisso com a defesa de suas terras, culturas e com a educação diferenciada. Pintados como para um ritual, dezenas de lideres indígenas e de comunidades quilombolas apresentaram a Marina documento com suas reivindicações.
"Os povos indígenas e os povos da floresta dão uma grande contribuição ao meio ambiente do planeta" - afirmou ela, lembrando o legado de Chico Mendes, seu companheiro de lutas, caminhando na direção já assinalada pelo antropólogo Darell Posey, para quem "se o conhecimento do índio for levado a sério pela ciência moderna e incorporado aos programas de pesquisa e desenvolvimento, os índios serão valorizados pelo que são: povos engenhosos, inteligentes e práticos, que sobreviveram com sucesso por milhares de anos na Amazônia".
Na ocasião, o índio Tukano Maximiliano Menezes, ex-presidente da COIAB - Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira disse:
- É a primeira vez na história do Brasil que somos recebidos por uma candidata a presidente da República. A senhora nasceu na Amazônia, viveu nossa realidade, sentiu na pele o sofrimento dos povos indígenas".
E Dilma, a outra candidata, onde estava? Em Tocantins, no palanque de Kátia Abreu, pedindo votos para a líder do agronegócio que pisoteia os direitos constitucionais dos índios e "tentou sabotar as ações fiscais de combate ao trabalho escravo no campo" como me escreveu uma amiga que assistiu e me enviou as imagens de Dilma e Kátia, uma pedindo voto para a outra. Vale a pena ver, são trinta segundos (https://www.youtube.com/watch?=KKKgQoo9_t4).
A questão indígena não é somente um caso de vontade política, mas obviamente de inteligência politica. Qualquer eleitor minimamente preocupado com o destino dos índios - somos poucos, mas somos - vota, definitivamente, em Marina, nesse primeiro turno, porque em última análise se trata do destino de todos nós. Nem Boff nem frei Beto, que às vezes fazem minha cabeça, me convencem do contrário. Cada um escolhe suas lealdades, há quem prefira o PT, há quem opte pelo índios. Será uma pena se Marina não puder debater com Dilma no segundo turno, em igualdade de condições, as propostas para outro Brasil. Sem ela, nem Dilma e muito menos Aécio sequer mencionarão os índios, que estão fora de seus horizontes.