"Por favor, pare agora, senhor Juiz, pare agora"
Wanderlea
Quando tomei conhecimento da lambança do juiz que foi flagrado numa blitz no Rio dirigindo sem habilitação um carro sem placa e sem registro de licenciamento, telefonei para minhas irmãs em Manaus. São elas as narradoras oniscientes que me abastecem com as histórias do Bairro de Aparecida, em cujos becos cabe todo o universo. Tudo o que acontece e ainda vai acontecer no planeta, já ocorreu no Beco da Bosta, onde se vive um tempo mítico. O Beco contém o mundo e o infinito. Essa é que é a verdade.
- Maninha, como é o nome do teu ex-vizinho, marido da dona Albertina, que mandou prender a Leonor por causa da farinha do Uarini?
- "Cachorrão" era o apelido. Já morreu faz tempo. Esqueci o nome dele, mas da história eu lembro - me disse a Dile.
Consultei as outras irmãs. Nada. Nenhuma delas - são 9 - sabia o nome do "Cachorrão". Nem a Helena que tem memória de elefante. O cara era tão bostífero, mas tão bostífero que elas apagaram seu nome da memória. Nos anos 1950, ele serviu o Exército aquartelado no 27° Batalhão de Caçadores, hoje prédio do Colégio Militar. Lá dentro era um reles soldado e se borrava todo diante do grito do sargento, mas lá fora se sentia "o general", berrava e mugia, humilhava e agredia mulher, filhos e vizinhos civis.
Quando deu baixa, "Cachorrão" manteve o poder, porque trocou a farda verde-oliva pelo uniforme cáqui da Guarda Municipal de Parques e Jardins Com ela, vestido e investido de autoridade, continuou semeando terror nas ruas, vielas e becos do bairro, amparado em postura municipal que conferia atribuições aos guardinhas para "manter a ordem pública, impedir a prática de delitos e defender o patrimônio municipal".
Teste da farinha
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Por que proibir costume tão enraizado em nossa cultura que deixa embasbacado os que vêm de fora? Por puro preconceito. Acontece que na época Manaus detinha o maior índice de tuberculose no país, registrando 98,6 casos por 100 mil habitantes. Além disso, os leprosários do Aleixo e de Paricatuba acolhiam número crescente de portadores de hanseníase. Aí, um médico vindo de São Paulo se invocou que a farinha era crocante porque leprosos deixavam casquinhas dentro do paneiro. Fez campanha para proibir a prática.
Esse médico incompetente, traumatologista e ortopedista, não entendia chongas de epidemiologia e de saúde pública, nem muito menos de mandioca, achava que os bacilos de Hansen e de Koch eram transmitidos através da farinha manuseada, especialmente aquela fabricada no município de Uarini, feita de mandioca puba amarela, com caroços duros, granulados e uniformes. Saborosos. Convenceu os vereadores.
O truculento prefeito Stênio Neves assinou portaria em 1955, estabelecendo multas para vendedores cujos fregueses usassem a mão para provar farinha. O parágrafo "d" da portaria obrigava o uso de caneco nos mercados, feiras e bancas avulsas para evitar qualquer contato do produto com a pele do comprador. Para isso se baseou na Lei n° 132 de 15 de Junho de 1949 que criou a Guarda Municipal. Mas ninguém queria usar caneco.
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Mão no paneiro
Foi aí que o Cachorrão decidiu comer farofa de jabá. Já tinha em casa cebola, alho, salsinha, tomate e pimenta murupi, só faltava a farinha do Uarini. Vestido com a farda de guardinha, ele - que devia zelar pelo cumprimento da lei - transgrediu. Meteu a mão no paneiro, Leonor protestou:
- Assim me prejudica. Use o caneco, por favor!
Cachorrão invocou sua condição de agente da lei, Leonor objetou que ele não era Deus. Depois de intenso bate-boca, ela recebeu voz de prisão por desacato à autoridade. O Petel saiu em defesa da cunhada, por quem nutria amor platônico. Saíram na porrada. Foram levados para a Chefatura de Polícia, no antigo casarão da Marechal Deodoro. O Delegado confirmou a prisão e estipulou fiança de três salários mínimos, na época 2.400 cruzeiros, num total de 7.200. A Teca e a Céu, apaixonada pelo Petel, fizeram uma "vaquinha" e libertaram os dois das garras do arbítrio.
Mais de meio século depois, o juiz João Carlos de Souza Correa foi parado em blitz da Lei Seca, em 2011, na Zona Sul do Rio, completamente irregular. A agente de trânsito Luciana Tamburini, como manda a lei, determinou que o Land Rover sem placa fosse rebocado. O juiz deu voz de prisão a ela, que recorreu à Justiça. Na última quarta-feira, finalmente, a 14ª Câmara do Tribunal, composta por coleguinhas do juiz, por unanimidade e corporativamente, manteve a condenação que obriga a agente de trânsito a pagar R$ 5 mil ao magistrado sem carteira.
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Depois, os black-blocks que saem às ruas são considerados desordeiros, quando a ordem já foi subvertida justamente por aqueles que deviam por ela zelar. Temos orgulho de Luciana e vergonha do juiz. Se não tivermos coragem de gritar isso, é porque merecemos o poder judiciário que temos.
Eu não disse que qualquer evento em qualquer parte do mundo já aconteceu no Bairro de Aparecida? Meu sobrinho Sérgio, que não me deixa mentir, fotografou o cenário e o local do crime. Esse juiz e o Cachorrão são mesmo farinha do mesmo saco.
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