“Grito de agonia: periquito na jaqueira preso na resina”.
Anibal Beça (1946-2009)
Uma entrevista exclusiva que fiz me permite desvendar, enfim, o mistério das mortes de 200 periquitos-de-asa-branca, semana passada, na Avenida Ephigênio Salles, em Manaus. Eles não foram atropelados nem envenenados por moradores de um rico condomínio como se anunciou. É verdade que a necropsia realizada em cinco deles pelo veterinário do IBAMA, Diogo Lagroteria, constatou hemorragia interna, sugerindo intoxicação por veneno ou por traumatismo. No entanto, o que houve foi um suicídio coletivo. Resta saber as razões. É o que veremos.
A confirmação do suicídio exige prévia contextualização dos fatos com descarte das demais hipóteses. Conto como foi. Bandos de periquitos brincalhões, depois do banho diário no igarapé do Mindu, à tardinha, costumam sobrevoar em voos rasantes a zona centro-sul de Manaus, com gritinhos álacres – krik, krik, krik – produzindo um fundo musical do ecossistema manauara tão relevante para a identidade e a memória da cidade que um dos nossos poetas, Aníbal Beça, celebrou com um haikai:
– Hora do recreio: periquitos tagarelas brigam pelas mangas.
Os periquitos foram os primeiros a chegar, muito antes dos forasteiros urbanóides que, com a expansão da cidade, invadiram o território avícola. Os intrusos, como forma de compensação, foram obrigados a indenizar as aves, após a promulgação do Código Ambiental. Essa Lei Municipal 605 de 2001 protege fragmentos florestais e determina “a obrigação de defendê-los e preservá-los para as presentes e futuras gerações”, reconhecendo o direito de todos, inclusive dos periquitos, ao meio ambiente ecologicamente sadio e equilibrado.
Guerra aos periquitos
O invasor arrasou florestas, construiu mansões. Um condomínio de luxo na Av. Ephigênio Salles plantou palmeiras imperiais. Os periquitos, amparados pela lei e sem qualquer preconceito, fizeram ali suas camas. Diariamente, à tardinha, sempre na hora do tacacá na Amazônia – que para os moradores é a hora do chá na Inglaterra – iniciavam revoada alegre ao lugar de repouso, encenando espetáculo de rara beleza.
Um zeloso morador, mais preocupado com o chá do que com o tacacá, teria tentado, sem sucesso, ensinar um periquito aprisionado a falar, usando para isso os conhecidos métodos How to teach your budgie to talk ou Come insegnare al tuo pappagallino a parlare. As aves se recusaram, não por incapacidade, mas porque sabiam que o Porto de Lenha jamais será Roma ou Liverpool. Só cantavam e piavam.
O pio-pio coletivo, que é sinfonia aos ouvidos do poeta, virou “barulho incômodo” para os condôminos. Com uma agravante: as aves comiam frutas e legumes surrupiados das cozinhas das mansões e faziam cocô nas palmeiras. Papagaio come milho, periquito leva a fama. Bastou isso para o condomínio considerar os periquitos como inimigos. No final de 2011, declarou-lhes guerra de extermínio.
O intruso forasteiro cavou trincheiras, ergueu barricadas, montou telas de proteção nas palmeiras, onde aves estressadas acabaram aprisionadas. Dessa forma, foram impedidas de circular. Segundo denúncias, foram usadas também armas químicas de destruição em massa. Por isso, o presidente do Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas (IPAAM), Antonio Stroski, suspeita que as mortes podem ter sido causadas por envenenamento.
A guerra química é combinada com o assassinato diário de quatro a cinco periquitos que morrem esmagados, atropelados por ônibus, taxis, caminhões e carros particulares dos moradores, mais parecidos com tanques blindados que atacam numa guerra convencional. Na noite do dia 26, em que morreram os 200 periquitos de uma só vez, imagens do sistema de segurança do condomínio mostram que uma carreta em alta velocidade bateu numa árvore, cujos galhos foram sacudidos, o que foi apresentado equivocadamente como provável causa da tragédia.
No sábado (29/11), cerca de 300 pessoas indignadas manifestaram em frente ao Condomínio contra a morte dos periquitos, exigindo que seja feita uma investigação pelas Polícias Federal e Civil, com a punição exemplar dos culpados como manda a lei. Enquanto houver gente capaz de protestar, o mundo ainda não está de todo perdido. Os manifestantes chamaram o Corpo de Bombeiros que retirou pássaros feridos, ainda vivos, presos nas telas. Finalmente, na última terça-feira (2), por determinação do IPAAM, bombeiros removeram as telas assassinas para preservar a integridade física dos pequenos inquilinos.
Defesa da vida
O extermínio das aves é “uma mancha na história de Manaus. Talvez seja um divisor de águas na forma como a cidade enxerga e trata o meio ambiente” – declarou o presidente do IPAAM, para quem “é preciso encontrar formas de convivência entre moradores e periquitos”. Sugeriu algumas medidas: a recuperação de áreas degradadas para integrar grupos de animais nos fragmentos florestais, a implantação de redutores de velocidade na avenida (lombadas de trânsito) e a criação de projetos de educação ambiental e envolvimento comunitário.
Com a morte dos periquitos, morrem também pedaços da nossa humanidade perdida que precisa ser reconquistada. O destino dos periquitos e da cidade está nas mãos dos 300 manifestantes que saíram às ruas em defesa da vida. Eles são um fiapo de esperança por terem consciência, como cantou Manoel de Barros, de que o cu de uma formiga é mais importante do que um condomínio de luxo. Qualquer engenheiro furreca constrói casas, mas ninguém é capaz de fabricar o fiofó de uma formiga.
De qualquer forma, as mortes precisam ser esclarecidas. O Laboratório da Universidade Federal de Viçosa (MG) já está realizando exames toxicológicos do material coletado. No entanto, uma periquita-das-ilhas nascida no médio Solimões, viúva de um dos periquitos, declarou em entrevista exclusiva ao Taquiprati que não foi envenenamento, nem atropelamento. Foi suicídio mesmo.
O maior especialista em periquitas da Amazônia, Ademir Ramos, professor da UFAM traduziu do periquitês as declarações da entrevistada. Ela confirma a colocação de veneno e os atropelamentos, mas considera que foram apenas causas indiretas das mortes. Na realidade, os 200 periquitos se suicidaram.
– Por que? – indagamos.
De desgosto – respondeu dona Periquita. Eles sabiam que era veneno. Ingeriram para morrer. Não suportaram a truculência da vizinhança. Fizeram isso para não terem de continuar convivendo com gente tão escrota e desumana. Morreram também de saudades do poeta Anibal Beça, que era capaz de ouvir seus gritos de agonia, retomado pelos manifestantes e pela turma do Projeto Jaraqui.
P.S. – Agradeço as fotos pirateadas e as fontes onde bebi água cristalina: 1) a cobertura impecável dos fatos feita pela repórter Elaize Farias da Agência Amazônia Real (http://amazoniareal.com.br/); 2) os comentários do meu amigo Darcy Marubo, consciente de que quem mata periquito, mata índio; 3) os professores da UFAM – Ademir Ramos, sempre de bom-humor, desde quando, como seminarista, criou a Pastoral Erótica, e Welton Yudi Oda – sempre na linha de frente.