CRÔNICAS

Os Kaingang e a mídia: falta vagina em Chapecó

Em: 23 de Setembro de 2016 Visualizações: 47172
Os Kaingang e a mídia: falta vagina em Chapecó

O Diário do Iguaçu de Chapecó (SC) acabou sendo vítima de seu próprio veneno. Vejam só a manchete chocante da edição de 3 de maio de 2016, cuja foto de capa circulou nas redes sociais: "GERÊNCIA DE SAÚDE AFIRMA QUE NÃO VAI FALTAR VAGINA". A pergunta que se impõe é: foi erro de revisão, incompetência, sabotagem ou sacanagem?

A mesma pergunta pode ter sido feita quinze anos antes pelos índios quando leram no mesmo jornal matéria igualmente surpreendente, em janeiro de 2001, ilustrada com uma charge. É a entrevista com o vereador Amarildo Sperandio, então do PFL (vixe, vixe), que afirmou ser "um absurdo os índios quererem mais terra, se não produzem". Ignorante, alegou que "muitos na reserva de Toldo Chimbangue, louros e de olhos claros, não são indígenas autênticos". A charge assinada por Alex Carlos mostra um "homem branco" armado com um machado, que ameaça um kaingang:

- "Já que índio quer terra, vou dar sete palmos de terra pro índio".

Diante da morte anunciada, no outro quadrinho o índio foge, deixando cair um celular, como "prova" da "falsa identidade" dos Kaingang da região. Está implícito que a terra assim desocupada pelos "falsos índios" pode ser invadida pelas "classes produtoras" que respiram, enfim, aliviadas.

A incitação ao crime levou os Kaingang a procurar o Ministério Público Federal (MPF) que processou o jornal. Mas o Poder Judiciário local fez o que se costuma fazer na primeira instância: julgou a ação improcedente. Afinal, se você abrir a cabeça de um juiz vai encontrar lá dentro, quase sempre, fé em preconceitos, a mesma fé que existe na cachola de um jornalista, ou o plural aumentado de fé, que é fé de mais. Juiz e jornalista estudam na mesma escola, assistem os mesmos programas de tv, leem o mesmo jornal e compartilham a mesma desinformação intolerante sobre as culturas indígenas.

Danos morais

O MPF, porém, recorreu ao Tribunal Regional Federal (TRF) da 4ª Região, que fez justiça e condenou os acusados a pagarem R$ 100 mil aos Kaingang por danos morais coletivos causados pelas matérias racistas. Os réus interpuseram recursos no Superior Tribunal de Justiça (STJ), que se arrastaram nos últimos doze anos, mas nenhum deles foi admitido. O caso transitou em julgado. Com a condenação definitiva em abril de 2016, o MPF ajuizou ação para os condenados pagarem R$ 850,00 de indenização em valores atualizados, com juros, honorários e multas.

O Diário do Iguaçu, tabloide colorido criado em 1997, com tiragem de 10 mil exemplares diários, feito por 130 trabalhadores diretos e terceirizados, alegou impossibilidade de efetuar o pagamento, sob o risco de falir como O Iguaçu, seu antecessor, o que não é uma  boa notícia. Trata-se do principal veículo impresso do interior de Santa Catarina, com correspondentes e sucursais nas principais cidades da região, vários cadernos temáticos que cumprem uma função educativa e são usados nas escolas.

O cacique da Terra Indígena Toldo Chimbangue, Idalino Fernandes, deu provas de sabedoria e não deixou o jornal morrer:

- “Eles disseram que se fossem pagar em dinheiro, teriam que fechar o jornal. Eu disse: nós não queremos dinheiro, queremos que vocês contribuam com a comunidade, informando as pessoas para que elas saibam os absurdos que vocês falaram. Precisamos também de pessoas formadas em Direito e Pedagogia. Isso é mais importante que dinheiro”.

A indenização

Da negociação entre as partes, nasceu um acordo interessante. O jornal custeia estudantes indígenas na Universidade Comunitária Regional de Chapecó (UnoChapecó) em vagas nos cursos de agronomia, direito e enfermagem, além de uma turma de 20 a 30 professores indígenas num curso de pós-graduação em Educação Intercultural: Metodologias de Ensino na Educação Básica. O pagamento do jornal à Universidade será feito através de permuta com a cessão de espaço.

Além disso, o Diário do Iguaçu fica devendo ainda R$ 390 mil para saldar toda a dívida. Os Kaingang aceitaram que o resto seja pago também por meio de cessão de espaço. Durante cinco anos, o jornal vai publicar informativos, artigos, notas e quaisquer outras publicações de interesse dos índios, solicitadas pelo cacique Idalino. De repente, pela primeira vez na história do país, um jornal pode publicar uma coluna bilíngue português x kaingang, valorizando a língua, furando o bloqueio do racismo e dando maior visibilidade aos índios.

O inédito acordo judicial permite que os Kaingang usem mais um instrumento para combater a ignorância, a barbárie e o preconceito, que já foram responsáveis por muitas mortes, incluindo a de Vítor Pinto, uma criança Kaingang de dois anos, da Aldeia Kondá, comunidade indígena de Chapecó, degolada em dezembro passado no colo de sua mãe quando ela vendia artesanato no litoral catarinense. O Procurador da República de Chapecó (SC), Carlos Humberto Prola, considera que "o acordo é importante pela autonomia que os indígenas terão na gestão do espaço no jornal".

O cacique Idalino concorda, argumentando que "o preconceito era muito forte, a maioria da população de Chapecó era contra a gente sem falar nos vereadores, que sempre faziam discursos contrários". Depois da decisão do TRF, as manifestações racistas dos vereadores cessaram, ao menos publicamente, informa nota do Conselho Indigenista Missionário (CIMI-Sul).

Troca de letra

As manifestações racistas ocuparam as páginas do jornal durante todo o tempo em que o processo transitou nos tribunais. O Sindicato dos Professores de Santa Catarina repudiou publicamente outra charge publicada em 09 de agosto de 2012, que discrimina alunos cotistas das universidades federais, acusando o Diário do Iguaçu de não apurar os fatos para informar com imparcialidade. A nota conclui:

- "Um veículo tendencioso e preconceituoso não deveria fazer parte da leitura diária dos catarinenses. Esperamos que a direção desse Jornal se retrate, pois pais, alunos e professores de Chapecó e região estão revoltados pela desqualificação da escola pública apresentada na referida Charge. Esperamos ainda que o Jornal não volte a tratar de qualquer questão de forma discriminatória e desrespeitosa".

Ah, e a falta de vagina? Pesquisa feita por Riomar Bruno revela que a manchete verdadeira do jornal foi outra, mas alguém a adulterou com uma caneta, transformando a letra "c" de vacina na letra "g", tirou uma foto e publicou no facebook. Mas nem por isso as vacinas deixaram de ser vacinas da mesma forma que os kaingang continuam kaingang, independente das adulterações feitas. De qualquer forma, com a decisão judicial, suspeito que depois disso não haverá mais vagina em Chapecó.

P.S. - Agradeço a Natalie Unterstell pela informação sobre o andamento e resultado do processo movido pelos Kaingang.

EL OREJIVERDE - Edición digital nº +504 - 27 Nov 2016 - 19:31:

ACUERDO JUDICIAL DE LOS KAINGANG:

NUNCA MÁS HABRÁ VAGINA EN CHAPECÓ

José Ribamar Bessa Freire - Diário do Amazonad

El Diário do Iguaçu de Chapecó, en Santa Catarina, acabó víctima de su propio veneno. Vean el titular chocante de la edición del 3 de mayo de 2016, cuya foto de capa circuló en las redes sociales: "GERENTE DE SALUD AFIRMA QUE NO VA A FALTAR VAGINA". La pregunta que se impone es: ¿fue error de revisión, incompetencia, sabotaje o mala fe?

La misma pregunta se hubieran podido hacer los indios hace quince años, cuando leyeron en el mismo diario un artículo igualmente sorprendente, en enero de 2001, con una ilustración. Se trata de una entrevista con el edil Amarildo Sperandio, entonces del Partido Frente Liberal (PFL), donde afirma que es "un absurdo que los indios quieran más tierra, si no producen". Ignorante, alegó que "muchos en la reserva de Toldo Chimbangue, rubios y de ojos claros, no son indígenas auténticos". La ilustración caricaturesca de Alex Carlos muestra un "hombre blanco" armado con un machete, amenazando a un kaingang:

- "Ya que indio quiere tierra, le voy a dar siete palmos de tierra". Una referencia al espacio ocupado por los muertos en el cementerio.

Ante la muerte anunciada, en otro cuadro el indio huye, dejando caer un celular, como "prueba" de la "falsa identidad" de los Kaingang de la región. Está implícito que la tierra, al ser desocupada por los "falsos indios" puede ser invadida por las "clases productoras" que respiran aliviadas.

La incitación al crimen indujo a los Kaingang a procurar el Ministerio Público Federal (MPF) que procesó al diario. Pero el Poder Judiciario local hizo lo que se acostumbra hacer en la primera instancia: juzgó la acción improcedente. Al final, si uno abre la cabeza de un juez, va a encontrar allí dentro casi siempre fe en prejuicios, la misma fe que existe en la de un periodista, o el plural aumentado de fe, que en portugués significa también mal olor. Juez y periodista estudian en la misma escuela, asisten a los mismos programas de tv, leen el mismo diario y comparten la misma desinformación intolerante sobre las culturas indígenas.

Daños morales

El MPF, entre tanto, recurrió al Tribunal Regional Federal (TRF) de la 4ª Región, que hizo justicia y condeno a los acusados a pagar R$ 100 mil a los Kaingang por daños morales colectivos causados por las noticias racistas. Los reos interpusieron recursos en el Superior Tribunal de Justicia (STJ), que se arrastraron a lo largo de doce años, pero ninguno fue admitido. El caso transitó en juicio. Con la condenación definitiva en abril de 2016, el MPF decidió que los condenados paguen R$ 850 mil de indemnización en valores actualizados, con intereses, honorarios y multas.

El Diário do Iguaçu, tabloide a colores creado en 1997, con tiraje de 10 mil ejemplares diarios, hecho por 130 trabajadores directos y tercerizados, alegó imposibilidad de efectuar el pago, con riesgo de quebrar como O Iguaçu, su antecesor, lo que no es una  buena noticia. Se trata del principal vehículo impreso del interior de Santa Catarina, con corresponsales y sucursales en las principales ciudades de la región, varios cuadernos temáticos que cumplen una función educativa, usados en las escuelas.

El cacique de la Tierra Indígena Toldo Chimbangue, Idalino Fernandes, dio pruebas de sabiduría al no permitir que el periódico desapareciera:

- “Ellos dijeron que si fuesen a pagar en dinero, tendrían que cerrar el diario. Yo dije: no queremos dinero, queremos que Uds. contribuyan con la comunidad, informando a las personas para que sepan los absurdos que Uds. divulgaron. Precisamos también de personas formadas en Derecho y Pedagogía. Eso es más importante que dinero”.

La indemnización

De la negociación entre las partes, nació un acuerdo interesante. El Diario asume los costos de estudiantes indígenas en la Universidad Comunitaria Regional de Chapecó (UnoChapecó) en los cursos de agronomía, derecho y enfermería, además de un grupo de 20 a 30 profesores indígenas en un curso de post-grado en Educación Intercultural: Metodologías de Enseñanza en Educación Básica. El pago del periódico a la Universidad será a través de permuta con la cesión de espacio.

Aún así, el Diário do Iguaçu queda todavía con una deuda de R$ 390 mil para saldar. Los Kaingang aceptaron que el saldo restante sea pago también por medio de cesión de espacio. Durante cinco años, el diario va a publicar informativos, artículos, notas y cualquier otra publicación de interés de los indios, solicitada por el cacique Idalino. De esta forma, por la primera vez en la historia del país, un periódico puede publicar una columna bilingüe portugués x kaingang, valorizando la lengua, rompiendo el bloqueo de racismo y dando mayor visibilidad a los indios.

El  inédito acuerdo judicial permite que los Kaingang usen más un instrumento para combatir la ignorancia, la barbarie y el prejuicio, que fueron responsables por muchas muertes, incluyendo la de Vítor Pinto, un niño  Kaingang de dos años, de la Aldea Kondá, comunidad indígena de Chapecó, degollada en diciembre pasado en los brazos de su madre cuando vendía artesanía en el litoral catarinense. El Procurador de la República de Chapecó (SC), Carlos Humberto Prola, considera que "el acuerdo es importante por la autonomía que los indígenas tendrán en la gestión del espacio en el diario".

El cacique Idalino concuerda, argumentando que "el prejuicio era muy grande, la mayoría de la población de Chapecó estaba contra nosotros,  sin contar con los ediles, que siempre hacían discursos contrarios". Después de la decisión del TRF, las manifestaciones racistas de los ediles acabaron, por lo menos públicamente, informa nota del Consejo Indigenista Misionero (CIMI-Sul).

Cambio de letras

Las manifestaciones racistas ocuparon las páginas del diario durante todo el tiempo en que el proceso transitó  en los tribunales. El Sindicato de los Profesores de Santa Catarina repudió públicamente otra ilustración publicada el 09 de agosto de 2012, que discrimina alumnos que ingresan por cuotas a las universidades federales, acusando al Diário do Iguaçu  por no investigar los hechos para informar con imparcialidad. La nota concluye:

- "Un vehículo tendencioso y prejuicioso no debería hacer parte de la lectura diaria de los catarinenses. Esperamos que la dirección de ese Diario se retracte, pues padres, alumnos y profesores de Chapecó y región están inconformados por la descualificación de la escuela pública presentada por la referida ilustración. Esperamos que el Diario no vuelva a tratar de cualquier cuestión de forma discriminatoria y con falta de respeto".

Ah, ¿y la falta de vagina? Investigación realizada por Riomar Bruno revela que el titular verdadero del diario fue otro, pero alguien lo adulteró con un lapicero, transformando las letras "c"  de ‘vacina’ (palabra en portugués para vacuna) en la letra "g", tiró una foto y lo publicó en facebook. Pero no por eso las ‘vacinas’ dejaron de ser vacunas de la misma forma que los kaingang continuan kaingang, independiente de las adulteraciones. De cualquier forma, sospecho que después de la decisión judicial, no habrá más vagina en Chapecó.

 

El Orejiverde, diario de los pueblos indígenas Edición digital nº +504 - 27 Nov 2016 - 19:31:

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15 Comentário(s)

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Roberto Luiz Abtibol Porto comentou:
23/03/2020
Que maravilha esse texto. sempre e muito atento a luta em prol dos povos Indígenas. um abraço carinhoso querido amigo
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Magela Ranciaro (via FB) comentou:
09/10/2016
Um indicardor: pode faltar leito em qualquer hospital, menos va...cina!
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Braz França (via FB) comentou:
02/10/2016
Coitado dos Chapecoenses, felizmente que isso não vai acontecer com os Baré do Rio Negro.
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Ira Maciel comentou:
26/09/2016
O seu humor é fantástico. Um acordo judicial e tanto.! legal! Abraço de Ira
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Renata Póvoa Curado (via FB) comentou:
25/09/2016
Muito bom prof!!! Q lição os Kaigang deram aos jornalistas!
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Vinicius Modesto (via FB) comentou:
25/09/2016
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Francisco César Manhães (via FB) comentou:
25/09/2016
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Balbina Guimarães (via FB) comentou:
25/09/2016
Achei interessante a estratégia de usar essa via - e que via! - para noticiar o acordo entre os Kaingang e o Diario do Iguaçu. A decisão judicial é inédita e devia ser estudada nos nossos cursos de direito.
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Alfredo Lopes (via FB) comentou:
25/09/2016
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Susana Grillo comentou:
24/09/2016
Contundente a estratégia dos Kaingang...
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Daniel Santos (FB) comentou:
24/09/2016
Inadmissível faltar ???? vacina.
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Zeca Torres Torrinho (via FB) comentou:
24/09/2016
Dá pra ver claramente que a letra C foi transformada em G com uma caneta hidrográfica. E o G da fonte original é diferente, basta comparar com o G da palavra \"Gerência\", no início da frase.
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Claudio Nogueira (via FB) comentou:
24/09/2016
A manchete foi no período carnavalesco pra chamar turista ?
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Helder Sarmento (VIA fb) comentou:
24/09/2016
E se faltar como sempre o governo manda importar, é um descaso com a população.kkk
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Ana Stanislaw comentou:
24/09/2016
Que notícia maravilhosa!!! Espero que sirva de inspiração para a grande mídia e o judiciário desse país. Adorei o texto, Bessa. Com g ou c, você é sempre genial, inteligente, provocador.
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