“Borboleta amarela, no céu azul, infinita beleza,
não fazer mal a ninguém, infinita beleza”
(Música e letra: Avaju Poty)
Terça-feira, 15 horas. No exato momento em que a Argentina entra no Estádio São Petersburgo para enfrentar a Nigéria, o velho professor, 71 anos, ingressa na sala Pipipã da Escola Oga Mitá, na Tijuca, Rio, para encontrar crianças do Ensino Fundamental, em outro jogo, onde não há álbum de figurinhas da Copa, mas apenas perguntas:
- Os índios sabem filmar? Existe índio fotógrafo? Tem emissora de rádio indígena? Cantor índio grava cd? Quais instrumentos tocam? Como contam histórias? Escrevem livros? Usam celular e computador? Ainda fazem artesanato? Menina indígena joga futebol? E as crianças, como brincam? Como cantam?
Oga Mitá – em língua tupi, Casa da Criança – é uma escola criada em 1978, em plena ditadura, cujo nome contrariava tendência dominante de batizar instituições de ensino com nomes estrangeiros. Sua opção político-pedagógica valoriza a história e a cultura do Brasil, mas sobretudo aposta no respeito à diversidade. Parte do princípio de que “a escola privada é uma concessão do Estado” e, portanto, deve ter “compromisso com a sociedade brasileira”. Pais e professores participam da sua gestão desde a fundação:
- A escola não é uma empresa qualquer, preocupada com o lucro. Sua relação com a comunidade não deve ser apenas a de mais uma prestadora de serviços. A Oga Mitá, não obstante ser uma instituição privada, quer se colocar a serviço da população e da qualidade do ensino básico nacional. Seus avanços pedagógicos e políticos devem estar comprometidos com a melhoria de todas as escolas públicas do país – afirma Aristeo Gonçalves Leite Filho, seu diretor, que é também professor da UERJ.
A turma Pipipã
As salas da Oga Mitá, em vez de números de referência, têm o nome de uma etnia indígena, que acompanha a turma durante sua escolaridade. Quem está na série final pesquisa, vota e escolhe o nome que identificará as crianças novas que estão entrando. Assim, Pipipã homenageia um povo que mora na Serra Negra, Pernambuco. Foi nesta sala do 2º ano do Ensino Fundamental, onde estuda sua neta, que o velho professor entrou para dar uma aula preocupado aqui dentro com o destino da seleção Argentina lá fora.
A primeira atividade foi a exibição do documentário “Das crianças Ikpeng para o mundo”, dirigido por três cineastas: Kumaré, Karané e Natuyu Yuwipo, e produzido pelo Vídeo nas Aldeias, uma espécie de escola de cinema para índios. Na tela da sala, quatro crianças Ikpeng - um povo de língua Karib - mostram sua aldeia no Xingu (MT), suas famílias, as brincadeiras, as festas, a forma de viver, tudo feito com muito humor. Os espectadores assistem em silêncio. O velho professor olha discretamente o seu celular e respira aliviado: gol de Messi aos 14 minutos.
O jogo continua. Na sala, o documentário confirma a existência de cineastas indígenas, entre os quais Alberto Alvares Tupã Ray, que acaba de fazer o filme – Tekoha Há’e Tetã – contando a trajetória dramática de uma criança guarani que veio da aldeia para a cidade. O velho professor menciona ainda os guarani de Angra e Parati (RJ) que, em 2017, fizeram curso com João Ripper, aprenderam técnicas fotográficas e conheceram câmeras e lentes, na atividade “Saberes Indígenas na Escola” - um projeto da UERJ e UFMG.
As crianças da sala Pipipã souberam também que a Rádio Yandé - Nós, em Tupi – criada em 2013, no Rio de Janeiro, é produzida apenas por índios e pode ser acessada por aplicativo para celular com uma programação 24 horas de entrevistas, depoimentos, poesia e música. Em seguida, todos ouvem em silêncio a música Popo Yju – Borboleta Amarela - do cd guarani Guata Porã, oportunidade para nova consulta ao celular: a Nigéria empata, inquietando os que torcemos para uma final com a Argentina que, com esse placar, vai sendo desclassificada.
Caminho da sabedoria
Mas o jogo continua. Aqui, no campo da sala de aula, o velho professor conversa sobre o significado da música, cuja letra é acompanhada no livro bilíngue Maino’i Rapé – O caminho da sabedoria. A borboleta é bela e mais bela ainda, de beleza infinita, porque não faz mal a ninguém.
Uma das crianças menciona Kabá Darebu, de Daniel Munduruku que a turma já conhece. A escritora Eliane Potiguara, que mora perto da Ogá Mitá, escreveu Metade Cara, Metade Máscara. Cristino Wapixana lança agora (03/07), no Rio, na Feira do Livro (FNLIJ), O Cão e o Curumim. Olívio Jekupe publicou vários livros entre os quais As queixadas e outros contos guaranis. Sim, existem muitos escritores indígenas.
No livro Maino’i Rapé manuseado naquele momento pelas crianças Pipipã, o velho professor mostra a foto do guarani Lucas Benites usando na aldeia um computador denominado por eles de Ayvu Ryru (Caixa de guardar a língua). Seleciona ainda outras histórias, entre as quais a do gato e do rato bilíngue. Exibe outro livro peruano, “Cuentos Pintados”, com histórias contadas através do desenho dos personagens e do cenário. Faz passar de mão em mão cabaças equatorianas, uma delas maior do que uma bola de basquete, que contam histórias pirogravadas.
Depois de muitas perguntas, o jogo chega aos minutos finais. Saudável algazarra. Enquanto as crianças Pipipã brincam com maracás, o velho professor pensa quão necessário é cultivar esse tipo de memória, justamente na escola, de onde todos guardarmos não só tabuadas, alfabetos, mas principalmente atitudes, valores e a beleza da borboleta no céu azul. Aqui reverenciamos aquilo que os índios e nós, por tabela, temos de melhor.
Os árbitros de vídeo - as professoras Aliny Lobo e Vivian Viegas com ajuda da estagiária Carolina Araújo - comandam a sessão final de fotos. Embora não estivesse no script, duas crianças – Bruno e Manuela – seguram a mão do velho professor e o arrastam para outra sala, querem mostrar o que produziram na aula de artes com a professora Xênia Froes: uma boneca feita de galhos de árvore. Benjamin, o outro Pipipã, ajeita seus óculos e mostra também sua produção: uma grande árvore com folhas que levam, cada uma, o nome de um povo indígena.
O celular vibra: no último minuto gooool da Argentina, que está classificada. O jogo termina. Mas tudo recomeçou no sábado (30). A Escola Oga Mitá organizou o Moitará – um evento em que todas as turmas da Educação Infantil até o Ensino Médio se encontram para troca de saberes e afetos. Justamente no dia e na hora do jogo Argentina x França. O velho professor recarrega as baterias dele e de seu celular. Ele só não se aposenta nas duas universidades onde leciona porque tem medo de, fora da sala de aula, morrer. E se morre, quem por aqui vai torcer pela Argentina? Quem aqui vai fazer ouvidos moucos à gritaria estridente e xenofóbica do Galvão Bueno contra los hermanos?
P.S. – Um professor se constrói com tijolinhos que vão sendo cimentados por seus formadores: docentes, colegas, alunos. O velho professor, normalista, faz aqui dois agradecimentos:
1) Aos professores do Curso Normal do Instituto de Educação do Amazonas (1963-1965) que com ele entraram na sala Pipipã. Embora muitos não estejam mais entre nós, todos aqui nominados despertaram-lhe o prazer do jogo na sala de aula: Orígenes Martins, Carlos Eduardo Gonçalves, Mercedes Ponce de León, Isis Falcone, Hilda Tribuzzi, Lurdinha Telles, Nivaldo Santiago, Cleomar Feitosa, Helena Cruz, Dilma Montezuma, Odaléa Frazão, Stélio Lobato, Afrânio Soares, Garcitylzo do Lago e Silva, José Braga, Benicio Leão, Waldock Lira, Martha Falcão, Modesto Bezerra, Alfredo Fernandes e Nazaré Xavier.
2) Às crianças Pipipã que com curiosidade, receptividade e um certo candor acabam de colocar alguns tijolinhos a mais, reafirmando o prazer lúdico do encontro com uma injeção de esperança na veia: Ana, Arthur, Benjamin, Bruno, Daniel, Emanuela, Fernando, Flora, Gabriel G., Gabriel S., Guilherme, João, Laura, Maria Flor, Manuela, Nina, Sophia, Sofia, Victor e Vicente.
VER TAMBÉM "COMO NÓS VELHOS BRINCÁVAMOS: UMA AULA NA EDEM: https://www.taquiprati.com.br/cronica/1331-como-nos-velhos-brincavamos-uma-aula-na-edem