“Te recuerdo Amanda (…) la vida es eterna en cinco minutos, suena
la sirena y tu caminando lo iluminas todo”. (Música de Victor Jara)
Nesta Copa do Mundo, a mídia está focada nos estádios da Rússia. Mas longe dali, outro estádio emergiu no noticiário jornalístico como cenário da barbárie: o Estádio Chile. Na terça-feira (3), a Justiça chilena condenou, enfim, os nove militares que assassinaram, em 1973, o cantor Víctor Jara, preso, torturado e executado com 44 tiros naquela arena hoje rebatizada com seu nome: Estádio Víctor Jara. Uma homenagem a quem canta o amor, a luta, a liberdade, e nunca usou sequer um canivete como arma. Só o violão, a voz, as ideias, a melodia.
Essa notícia me trouxe lembranças do encontro com o cantor chileno, em 1970. Foi assim. Ele havia participado de um evento internacional de teatro na Europa – Paris ou Berlim, não lembro bem – e voltava para o Chile, via Lima, onde passaria alguns dias. Lá, no bairro de Miraflores, eu e o casal Euclides e Adair - dois exilados brasileiros do Teatro de Bonecos Dadá - morávamos nos fundos de um casarão, sede do Instituto Cultural Peru-URSS, em cujo auditório ele se apresentaria.
Éramos uma espécie de “zeladores” do prédio, trocando pequenos serviços pela moradia solidária. Um desses serviços foi requerido pelo diretor do Instituto através de seu filho Germán Mendoza. O pai estava em Ica, sul de Lima, em afazeres numa fábrica artesanal de cachina - bebida feita de sumo de uva, e não podia receber Víctor Jara. Queria saber qual de nós dispunha de tempo para ciceronear o cantor pela cidade. Meus dois amigos trabalhavam na confecção de bonecos para a encenação de uma peça. O único “vagabundo” ali era eu. Bendita vagabundagem! Quanto privilégio!
Memória reformatada
Fiquei dois ou três dias zanzando com Víctor Jara pelas ruas de Lima, sempre em ônibus, mas as lembranças quase meio século depois permanecem embaçadas. A memória é o único lugar onde o passado existe e, ao evocar um fato, reformatamos essa lembrança – diz Bráulio Tavares em “Ilusões da Memória”. Por isso, faço um esforço, talvez ilusório, para não enfeitar as recordações, nem preencher eventuais lacunas. Seria arriscado reproduzir conversas. Vou me limitar a dois momentos. Um deles quando fui buscar Víctor Jara no bairro de Jesus Maria onde estava hospedado.
Ele me recebeu com “la sonrisa ancha”, um riso limpo e largo como a Amanda da canção - eu poderia escrever. No entanto, me pergunto se essa imagem não é uma recriação posterior a partir de suas fotos, quase sempre sorrindo, em algumas delas cantando para crianças da periferia. De qualquer forma, se o filho da dona Amanda, de origem mapuche da região de Biobio, tivesse me cumprimentado naquela hora na língua mapudungun - a “fala da terra” dos araucanos, eu não me surpreenderia. Será tal impressão a que tive em 1970 ou surge agora que escrevo? Sabe-se lá.
Uma coisa, porém, é certa. Ele queria visitar o Museu Nacional de Antropologia, Arqueologia e História do Peru, na praça Bolívar, em Pueblo Libre, com exposição da arte pré-hispânica em cerâmica, tecido e metais. Subimos no micro-ônibus xexelento, de cor verde, Comas - Pueblo Libre, cujo rádio, em alto volume, tocava cumbias, boleros e valsas interpretadas por Lucha Reyes, “la morena de oro del Perú”.
Logo no início da avenida Brasil, ao passar em frente à Basílica Maria Auxiliadora, o trocador se benzeu. Comentamos o fato e Víctor Jara me disse que havia sido seminarista, ia ser padre, mas desistiu.
– Que coincidência, eu também – falei.
A conversa tomou esse rumo e descobrimos que o seminário dele, lá no Chile, era da Congregação Redentorista, a mesma que me abrigou em Coari, Amazonas, o que criou certa cumplicidade. A diferença foi que ele entrou já adolescente e saiu de lá por livre e espontânea vontade, já eu entrei ainda de calça curta e fui expulso, por desobediente, mas suspeito que ocultei dele esse detalhe. A conversa prosseguiu em torno da ditadura no Brasil, do processo eleitoral da Unidade Popular no Chile e das reformas do governo Velasco no Peru.
Enfim, Justiça
Víctor Jara preferiu perambular pelos bairros populares. Não sei se no mesmo dia, mas em algum momento me convidou a comer cebiche, em pé, numa banca do mercado de Jesus Maria. Um senhor banquete, complementado com anticucho – coração de boi no espetinho e chinchulin - tripa de boi grelhada na brasa com molho de chimichurri, cujo aroma ainda me dá água na boca. Um esgalamido como eu jamais apaga sabores da sua memória.
Meu trabalho de cicerone foi fugaz, mas marcante, sua música me acompanhou durante esses anos. Por isso, a notícia da condenação dos seus assassinos me tocou intensamente. Em 1970, por pura timidez, nada perguntei sobre sua vida, mas esse encontro me permitiu conhecer alguém íntegro, generoso, sensível, alegre, marcado por uma infância pobre e comprometido com as lutas sociais.
Seu pai Manuel, um camponês que não sabia ler, era alcoólatra e se pirulitou, abandonando a mulher Amanda e os cinco filhos. Ela era letrada, tocava violão e cantava músicas folclóricas, o que contribuiu para que Víctor participasse do Coral da Universidade de Chile, como solista na Peña de los Parra e como diretor artístico do reconhecido grupo Quilapayún.
A Comissão da Verdade reuniu provas do crime cometido em 14 de setembro, quando ele ia completar 41 anos. O corpo, atirado em um matagal, tinha 44 marcas de balas, ossos fraturados e mãos esmagadas por coronhadas, segundo a autópsia confirmada por duas testemunhas. Foi sepultado no Cemitério Geral de Santiago, em cuja lápide está escrito: “Hasta la victoria”. Os nove bandidos que o assassinaram covardemente – ele estava algemado e com os olhos vendados – foram condenados a 18 anos de cadeia. A Justiça chilena tardou 45 anos, mas não falhou. E a brasileira?
Víctor Jara, um dos 30 mil mortos e desaparecidos na ditadura Pinochet, eternizou em “Te recuerdo Amanda” o amor de um casal de operários, que se encontrava diariamente na porta da fábrica por cinco minutos, até que um dia toca a sirene e ele, destroçado e morto, já não retorna. Quem hoje está de volta é o trovador Victor Jara, cuja arte permanece “iluminando todo” com sua música, sua coragem, seu desprendimento. Já seus assassinos foram atirados na lata de lixo da História.
A viúva - a bailarina britânica Joan Turner Jara e as duas filhas - Manuela e Amanda, receberam o reconhecimento do povo chileno, que ergueu um monumento ali onde seu corpo foi encontrado, mantendo o túmulo sempre com flores.
P.S. – A música “Te recuerdo Amanda” pode ser acessada em https://www.youtube.com/watch?v=GRmre8ggkcY
Ou com os Quilapayún - https://www.youtube.com/watch?v=ywilRl7z2hU
TE RECUERDO VÍCTOR JARA: LA VIDA ES ETERNA
José R. Bessa Freire - Diário do Amazonas - 08/7/2018.
Tradução: Maria José Alfaro Freire e Consuelo Alfaro Lagorio
“Te recuerdo Amanda (…) la vida es eterna en cinco minutos, suena
la sirena y tu caminando lo iluminas todo”. (Música de Victor Jara)
Durante esta Copa del Mundo, los medios de comunicación dan destaque a los estadios de Rusia. Muy lejos, otro estadio apareció en los telediarios como escenario de la barbarie: el Estadio Chile. El martes (3), la Justicia chilena condenó, por fin, a los nueve militares que asesinaron en 1973, al cantor Víctor Jara, preso, torturado y ejecutado con 44 tiros en esa arena hoy rebautizada con su nombre: Estadio Víctor Jara. Un homenaje a quien canta el amor, la lucha, la libertad, y que nunca usó ni siquiera una navaja suiza como arma. Unicamente la guitarra, la voz, las ideas, los acordes melodiosos.
Esa noticia me trajo recuerdos del encuentro con el cantor chileno que había participado en un evento internacional de teatro en Europa – Paris o Berlín, no me acuerdo – y volvía a Chile, pasando por Lima unos días en 1970. Allá, en el barrio de Miraflores con Euclides y Adair - los dos exilados brasileños del Teatro de Bonecos Dadá – vivíamos en un anexo de la casona, que era sede del Instituto Cultural Perú-URSS, donde Víctor Jara debía presentar un recital.
Éramos una especie de “conserjes”, hacíamos pequeños servicios a cambio de hospedaje solidario. Uno de ellos nos fue solicitado por el director del Instituto a través de su hijo Germán Mendoza. Su padre estaba en Ica, al sur de Lima, trabajando en su fábrica artesanal de cachina - bebida hecha del zumo de uva, por lo que no podía recibir a Víctor Jara. Nos consultó sobre la posibilidad de servir como guía al cantor. Mis dos amigos no podían porque estaban trabajando en el montaje de una pieza. El único “vagabundo” allí era yo. Bendita vagabundaje! Cuanto privilegio!
Memoria reformulada
Pasé dos o tres días paseando con Víctor Jara por las calles de Lima, siempre de ómnibus, pero los recuerdos casi medio siglo después permanecen nebulosos. La memoria es el único lugar donde el pasado existe y al evocar un hecho, reformulamos ese recuerdo – dice Bráulio Tavares en “Ilusões da Memória”. Por eso, hago un esfuerzo, tal vez ilusorio, para no adornar los recuerdos, ni llenar las eventuales lacunas. Sería arriesgado reproducir los diálogos. Voy a limitarme a dos momentos. Uno de ellos cuando fui a buscar a Víctor Jara en el barrio de Jesús María donde estaba hospedado.
El cantor me recibió con “la sonrisa ancha”, una sonrisa limpia y amplia, como Amanda de la canción - podría escribir ahora. Sin embargo, me pregunto si esa imagen no es una recreación posterior a partir de sus fotos, casi siempre sonriendo, en algunas de ellas cantando para niños de poblaciones desfavorecidas. De cualquier forma, si el hijo de doña Amanda, de origen mapuche de la región de Biobío, me hubiera saludado aquella hora en la lengua mapudungun - el “habla de la tierra” de los araucanos, yo no me sorprendería. ¿Será que es esa la impresión que tuve en 1970 o surge ahora que escribo? Sabe Dios.
Una cosa es verdad. Víctor Jara quería visitar el Museo Nacional de Antropología, Arqueología e Historia del Perú, en la plaza Bolívar, en Pueblo Libre, con exposición del arte pre-hispánico en cerámica, tejido y metales. Subimos al micro destartalado de color verde, Comas - Pueblo Libre, cuyo radio, tocaba a todo volumen cumbias, boleros y valses interpretados por Lucha Reyes, “la morena de oro del Perú”.
Al entrar en la avenida Brasil, frente a la Basílica María Auxiliadora, el chofer se persignó. Hicimos un comentario y Víctor Jara me contó que había sido seminarista, iba a ser padre, pero desistió.
– Que coincidencia, yo también – le dije.
La conversación versó sobre este tema y descubrimos que el seminario de Chile, era de la Congregación Redentorista, la misma que me abrigó en Coari, Amazonas, lo que creó una cierta complicidad. La diferencia fue que él entró ya adolescente y salió por libre y espontánea voluntad, ya yo entré cuando usaba pantalones cortos y fui expulso, por desobediente. Sospecho que le oculté ese detalle. La conversación prosiguió en torno de la dictadura en Brasil, del proceso electoral de la Unidad Popular en Chile y de las reformas del gobierno Velasco en el Perú.
En fin, Justicia
Víctor Jara prefirió deambular por los barrios populares de la ciudad. No sé si aquel mismo día, pero en algún momento me convidó a comer cebiche, de pie, en un puesto del mercado de Jesús María. Un señor banquete, complementado con anticucho – corazón de buey en pinchos y chinchulin - tripa de buey grillada en la brasa con salsa de chimichurri, cuyo aroma todavía me provoca agua en la boca. Un hambriento como yo jamás apaga sabores de la memoria.
Mi trabajo de cicerón fue fugaz pero dejó marcas, su música me acompañó todos estos años. Por eso, la noticia de la condenación de sus asesinos me tocó intensamente. En 1970, por pura timidez, nada le pregunté sobre su vida, pero ese encuentro me permitió conocer alguien íntegro, generoso, sensible, alegre, marcado por una infancia pobre y comprometido con las luchas sociales.
Su padre Manuel, un campesino que no sabía leer, era alcohólico, acabó abandonando su mujer Amanda y los cinco hijos. A ella le gustaba leer, tocaba guitarra y cantaba música folclórica, lo que contribuyó para que Víctor participase del Coral de la Universidad de Chile, como solista en la Peña de los Parra y como director artístico del reconocido grupo Quilapayún.
La Comisión de la Verdad reunió pruebas del crimen cometido el 14 de setiembre, cuando iba a cumplir 41 años. El cuerpo, tirado en un matorral, tenía 44 marcas de balas, huesos fracturados y manos destrozadas a golpes según la autopsia, confirmada por dos testigos. Fue sepultado en el Cementerio General de Santiago, en cuya lápida se lee: “Hasta la victoria”. Los nueve bandidos que lo asesinaron cobardemente – estaba esposado y con los ojos vendados – fueron condenados a 18 años de prisión. La Justicia chilena tardó 45 años, pero no falló. Y la brasileña?
Víctor Jara, uno de los 30 mil muertos y desaparecidos en la dictadura Pinochet, eternizó en “Te recuerdo Amanda” el amor de una pareja de obreros, que se encontraba diariamente en la puerta de la fábrica durante cinco minutos, hasta que un día toca la sirena y él, muerto, y destrozado no retorna más. Quien hoy está de regreso es el trovador Víctor Jara, cuyo arte permanece “iluminando todo” con su música, su coraje, su desprendimiento. En cambio, sus asesinos fueron a dar a la lata de basura de la Historia.
La viuda - la bailarina británica Joan Turner Jara y sus dos hijas - Manuela y Amanda, recibieron el reconocimiento del pueblo chileno, que erigió un monumento allí donde encontraron su cuerpo y mantiene el túmulo siempre con flores.
P.S. – La música “Te recuerdo Amanda” se puede accesar en https://www.youtube.com/watch?v=GRmre8ggkcY
Fragmento del libro “Víctor Jara : Un canto truncado”
Testimonio de Joan Jara.
Lo siento, tenía que encontrarla…Lamento decirle que Víctor ha muerto… Encontraron su cuerpo en la morgue.
(…)Le ruego que sea valiente y que me acompañe para identificarle.¿Llevaba calzoncillos azul oscuro?. Tiene que venir, porque su cadáver lleva allí casi cuarenta y ocho horas y, si nadie lo reclama, se lo llevarán y lo enterrarán en una fosa común.
(…)Bajamos un oscuro pasadizo y entramos en una enorme sala. Mi nuevo amigo me apoya la mano en el codo para sostenerme mientras contemplo las filas y filas de cuerpos desnudos que cubren el suelo, apilados en montones, en su mayoría con heridas abiertas, algunos con las manos todavía atadas a la espalda. Hay jóvenes y viejos…cientos de cadáveres…en su mayoría parecen trabajadores…cientos de cadáveres que son seleccionados, arrastrados por los pies y puestos en un montón u otro por la gente que trabaja en el depósito (…)Me paro en el centro de la sala, buscando a Víctor sin querer encontrarle y me asalta una oleada de furia. Se que mi garganta emite incoherentes ruidos de protesta, pero Héctor reacciona instantáneamente.(...)
Nos envían a la planta superior. El depósito está tan repleto que los cadáveres llenan todo el edificio, incluyendo las oficinas. Un largo pasillo, hileras de puertas y, en el suelo, una larga fila de cadáveres , estos vestidos, algunos con aspecto de estudiantes, diez, veinte, treinta, cuarenta, cincuenta…Y en la mitad de la fila descubro a Víctor.
Era Víctor, aunque le ví delgado y demacrado ¿Qué te han hecho para consumirte así en una semana?. Tenía los ojos abiertos y parecía mirar al frente con intensidad y desafiante, a pesar de la herida en la cabeza y terribles moretones en la mejilla. Tenía la ropa hecha jirones, los pantalones alrededor de los tobillos, el jersey arrollado bajo las axilas, los calzoncillos azules, harapos alrededor de las caderas, como si hubieran sido cortados por una navaja o una bayoneta…el pecho acribillado y una terrible herida abierta en el abdomen…las manos parecían colgarle de los brazos en extraño ángulo, como si tuviera rotas las muñecas, pero era Víctor, mi marido, mi amor.
En ese momento también murió una parte de mi. Sentí que una buena parte de mi moría mientras permanecía allí, inmóvil y callada…incapaz de moverme, de hablar."
Fragmento del libro , “Víctor Jara : Un canto truncado”
Testimonio de Joan Jara.