“A memória não é sonho, é trabalho” (Ecléa Bosi, 1987)
Cada vez que o Club Deportivo Magallanes do Chile entrar em campo nesta temporada 2020, os torcedores serão convidados a evocar o povo Selk’nam, sua cultura e sua arte, sua história e suas lutas. É que a nova camisa do time – algo inédito no continente americano - reproduz a beleza das pinturas corporais desses habitantes originais da Terra do Fogo, cujas peles reverberam nos estádios graças a historiadores, bibliotecários, museólogos, arquivistas, antropólogos e professores que, com o seu trabalho, tornaram visível aquilo que foi apagado pela versão fraudulenta de uma “história única”. O futebol permite que a memória indígena drible o esquecimento.
Um golaço contra a desmemoria foi marcado pelo historiador José Luís Alonso Marchante, autor de “Menéndez, Rey de la Patagonia” (2014), já na 12ª edição, centrado sobre os genocidas, com destaque para o latifundiário José Menéndez que pagava por cada índio morto. Ele exigia dos matadores de aluguel, como prova, um par de mãos ou de orelhas, estabelecendo o preço de uma libra por testículos e seios e meia libra por orelha de criança. Todos permaneceram impunes: documentos comprovam que as grandes empresas subornavam senadores para mudar as leis a seu favor. A cumplicidade entre os genocidas e o poder político era escancarada.
Foi o caso de Júlio Popper, um romeno naturalizado argentino, que no dia 5 de março de 1887, em conferência no Instituto Geográfico Argentino de Buenos Aires, exibiu como troféu um álbum com uma sequência completa de fotos das suas matanças. Presenteou uma delas, na qual aparece um Selk’nam morto, ao presidente argentino Juárez Celman. Os crimes foram qualificados como “legítima defesa” por sentença judicial de 1895. O Judiciário e o Senado estavam a serviço dos genocidas, apresentados como heróis pela historiografia oficial e homenageados em nomes de ruas.
A resistência
Agora, no seu novo livro “Selk’nam, Genocídio y Resistência” (2020), o historiador destaca as estratégias indígenas de luta, a construção de trincheiras, as rotas de fuga, as camuflagens. Para isso, passou uma temporada na Terra do Fogo e fuçou os arquivos de Buenos Aires, Santiago e Punta Arenas, onde encontrou abundante documentação sobre a resistência. Um diário inglês de 1882 mostra como o genocídio foi planejado com assassinatos, deportações e roubos das terras ancestrais. Numa entrevista a La Prensa Austral, ele fala de seus achados:
- No Arquivo do Ministério de Relações Exteriores de Santiago de Chile encontrei um documento que demonstra a cumplicidade das autoridades da época com as deportações dos Selk’nam, além de outro documento estarrecedor no Arquivo Regional de Magallanes: um contrato entre os religiosos e os latifundiários que previa o pagamento de uma libra esterlina por cada indígena deportado para a ilha Dawson.
Localizada no Estreito de Magalhães, esta ilha abrigou, a partir de 1890, uma missão salesiana, para onde eram degredados os índios sobreviventes. No Arquivo Central Salesiano de Buenos Aires, o historiador encontrou cartas e diários, comprovando que os missionários “registram as matanças, mas não enfrentam os latifundiários e acabam sendo cúmplices dessa história”. A Ilha do Terror - assim ficou conhecida - sediou na ditadura Pinochet um campo de concentração com opositores ao regime.
Os Selk’nam, conhecidos também como Ona, habitavam um vasto território no nordeste da Grande Ilha da Terra do Fogo. Eram mais de 4 mil indivíduos em 1885, quando os estancieiros da Argentina e do Chile, vinculados ao capital alemão e britânico, começaram a invadir a área indígena e organizar expedições de “caça aos bugres”. Meninas eram aprisionadas e levadas para o serviço doméstico ou como escravas sexuais. Os Selk’nam resistiram, atacando os rebanhos de ovelhas e destruindo as cercas invasoras num combate desigual. Em duas décadas, milhões de ovelhas já pastavam em seu território. Desterritorializados, em 1930 não passavam de 100 pessoas.
O genocídio
Para sobreviver em ambiente hostil, os sobreviventes se camuflaram. Considerada a última falante da língua, Ângela Loij morreu em 1974. Mas o Censo Nacional de 2010 na Argentina revelou a existência de 2.761 Selk’nam em todo o país, 294 deles na Terra do Fogo. Depois de mais de um século de luta, em 1998, a escritura das terras foi entregue à Comunidade Rafaela Ishton pelas autoridades argentinas. No Chile, cerca de 200 indivíduos de oito famílias congregadas na Comunidade Covadonga Ona lutam para serem reconhecidos, depois de terem sido considerados extintos.
Os Selk’nam contemporâneos, muitos de pais mestiços, estão reivindicando agora uma reparação histórica, apoiados por movimentos sociais e pesquisadores que, em Carta Pública, exigem o reconhecimento do genocídio pelo Estado do Chile, a repatriação dos corpos dos deportados e a construção de um memorial.
Um projeto, que tramita no parlamento desde 2007, ficou em compasso de espera, porque dois deputados propuseram substituir o termo “genocídio” por “extinção”, para evitar o pagamento de indenização e o reconhecimento dos sobreviventes Selk’nam, contrariando o “Informe da Comissão de Verdade Histórica e Novo Acordo com os Povos Indígenas” (2003, 2008), que “definiu como genocida a ocupação da Patagônia Austral e Terra do Fogo”.
- Cabe insistir que o genocídio foi um processo planificado y sistemático, decidido em reuniões com tudo registrado em atas – declaram os signatários da Carta Pública, para quem a luta contra a naturalização do extermínio em nome do “progresso” procura “fazer um mínimo de justiça histórica com as vítimas, resgatar sua memória e incorporar sua história nos currículos escolares e na políticas de identidade em níveis locais, regional e nacional”.
A parábola
Várias instituições trabalharam para retomar a memória histórica e jurídica dos Selk’nam. O Museu Regional recuperou, em 2012, junto ao Poder Judicial, o documento “Vexames infligidos a indígenas da Terra do Fogo” e realizou a exposição museográfica itinerante intitulada “O julgamento”, compartilhando cópia do sumário de 700 folhas conservado no Arquivo Nacional do Chile. A Universidade de Magallanes publicou versão na Biblioteca Digital da Patagônia e transcreveu artigos jornalísticos da época.
A partir daí, os dados históricos começaram a circular em diversos formatos: na peça de teatro “Kre-Chenen, agarrados de la luna”, no documentário dividido em dois capítulos de 30 minutos exibido em telefilme, em versão radiofônica e em material didático nas escolas. Os cantos Selk’nam gravados em cilindros de cera, em 1907, foram agora editados em CD pelo Instituto Nacional de Línguas Indígenas de Berlin.
A camisa do time de futebol chileno da segunda divisão, do qual já me considero ardoroso torcedor, é um exercício de memória, necessário especialmente em momentos em que a violência contra os ameríndios recrudesce hoje, no Brasil, que vive um retrocesso político sem igual. Bolsonaro declarou recentemente que “competente, sim, foi a cavalaria norte-americana, que dizimou seus índios no passado e hoje em dia não tem esse problema”. Frase similar o historiador espanhol ouviu na Argentina:
- "Talvez o testemunho mais terrível foi de um descendente de Alexander Mac Lennan, o maior caçador de índios. Ele me disse que embora fosse uma maldade as matanças dos selk’nam realizadas por Menéndez, por seu avô e por outros, graças a eles hoje não há índios na Terra do Fogo e lá reina uma absoluta tranquilidade”.
Os Selk’nam e a camisa do Deportivo Magallanes estão provando o contrário. Assim o que aconteceu pode ser visto “como uma parábola para esses tempos angustiantes em que vivemos”, como me lembrou um antropólogo que trabalhou com os Uitoto, citando Gananath Obeyesekere do Sri Lanka.
P.S. - Agradezco a mi amiga chilena Ximena por las reseñas enviadas y por las informaciones compartidas. Ya programé la lectura de los dos libros de José Luis Alonso. Estoy rezando para que el Deportivo Magallanes suba a la primera división, conservando su uniforme-documento.
Fútbol y memoria indígena en la Tierra del Fuego
José R. Bessa Freire - Diário do Amazonas. Tradução: Maria José Alfaro Freire e Consuelo Alfaro
"La memoria no es sueño, es trabajo” (Ecléa Bosi, 1987)
Cada vez que el Club Deportivo Magallanes de Chile entre en campo en esta temporada 2020, los hinchas serán convidados a evocar el pueblo Selk’nam, su cultura y su arte, su historia y sus luchas. Es que la nueva camisa del equipo – algo inédito en el continente americano - reproduce la belleza de las pinturas corporales de esos habitantes originales de la Tierra del Fuego, cuyas pieles se lucen en los estadios gracias a historiadores, bibliotecarios, museólogos, archivistas, antropólogos y profesores que con su trabajo, tornaron visible aquello que fue censurado en la versión fraudulenta de una “historia única”. El fútbol permite que la memoria indígena drible el olvido.
Un golazo contra la desmemoria, marcado por el historiador José Luís Alonso Marchante, autor de “Menéndez, Rey de la Patagonia” (2014), en la 12ª edición, centrado en los genocidas, con destaque en el latifundista José Menéndez que pagaba por cada indio muerto. Este exigía de los matadores, como prueba, un par de manos o de orejas, estableciendo el precio de una libra por testículos y senos y media libra por oreja de niños. Todos permanecieron impunes: documentos comprueban que las grandes empresas sobornaban senadores y jueces para mudar las leyes a su favor. La complicidad entre los genocidas y el poder político era descarada.
Fue el caso de Julio Popper, un rumano naturalizado argentino, que el día 5 de marzo de 1887, en una conferencia en el Instituto Geográfico Argentino de Buenos Aires, exhibió como trofeo un álbum con una secuencia completa de fotos de sus matanzas. Se lo ofreció al presidente argentino Juárez Celman y en una de las fotos, aparece un Selk’nam muerto a sus pies, con tres mercenarios. Los crímenes fueron calificados como “legítima defensa” por sentencia judicial de 1895. El Poder Judiciario y el Senado estaban al servicio de los genocidas que los presentan como héroes en la historiografía oficial y les rinden homenaje con nombres de calles.
La Resistencia
Ahora, en su último libro “Selk’nam, Genocidio y Resistencia” (2020), el historiador destaca las estrategias indígenas de lucha, la construcción de trincheras, las rutas de fuga, las formas de camuflarse. Para eso, pasó una temporada en la Tierra del Fuego, investigando los archivos de Buenos Aires, Santiago y Punta Arenas, donde encontró abundante documentación sobre la resistencia. Un periódico inglés de 1882 muestra cómo se organizó el genocidio con asesinatos, deportaciones y robos de tierras ancestrales. En una entrevista a La Prensa Austral, el autor relata:
- En el Archivo del Ministerio de Relaciones Exteriores de Santiago de Chile encontré un documento que demuestra la complicidad de las autoridades de la época. Se trata de un oficio del ministro mediante el cual ordenaba al gobernador de Magallanes que se pusiera en contacto con su homólogo argentino al objeto de ejecutar conjuntamente las deportaciones de los selk'nam. Otro documento estremecedor se encuentra en el Archivo Regional de Magallanes y es un contrato entre los religiosos y los terratenientes, acordando el pago de una libra esterlina por cada indígena deportado a isla Dawson".
Localizada en el Estrecho de Magallanes, esta isla abrigó, a partir de 1890, una misión salesiana, adonde se llevaba a los indios sobrevivientes. En el Archivo Central Salesiano de Buenos Aires, el historiador encontró cartas y diarios que comprueban que los misioneros “registran los asesinatos, pero no enfrentan a los terratenientes y terminan siendo cómplices de esta historia ”. Posteriormente, La Isla del Terror - como quedó conocida – sirvió de sede a la dictadura Pinochet, un campo de concentración para opositores del régimen.
Los Selk’nam, conocidos también como Ona, habitaban un vasto territorio en el noreste de la Gran Isla de la Tierra del Fuego. Eran más de 4 mil individuos en 1885, cuando los estancieros de Argentina y de Chile, vinculados al capital alemán y británico, comenzaron a invadir el área indígena y organizar expediciones de “caza a los salvajes”. Las niñas eran aprisionadas y llevadas para servicio doméstico o como esclavas sexuales. Los Selk’nam resistieron, atacando los rebaños de ovejas y destruyendo las cercas invasoras en un combate desigual. En dos décadas, millones de ovejas pastaban en su territorio. Desterritorializados, en 1930 no pasaban de 100 personas.
El genocidio
Para sobrevivir en ambiente hostil, los sobrevivientes tuvieron que camuflarse. Considerada la última hablante de la lengua, Ângela Loij, murió en 1974. Pero el Censo Nacional de 2010 en la Argentina reveló la existencia de 2.761 Selk’nam en todo el país, 294 de ellos en la Tierra del Fuego. Más de un siglo de lucha después, en 1998, las autoridades argentinas le entregaron la escritura de las tierras a la Comunidad Rafaela Ishton. En Chile, cerca de 200 individuos de ocho familias congregadas en la Comunidad Covadonga Ona luchan para ser reconocidos, después de haber sido considerados extintos.
Los Selk’nam contemporáneos, muchos de padres mestizos, están reivindicando ahora una reparación histórica, apoyados por movimientos sociales e investigadores que en Carta Pública exigen el reconocimiento del genocidio por parte del Estado de Chile, la repatriación de los cuerpos de los deportados y la construcción de un memorial.
Un proyecto que tramita en el parlamento desde 2007, quedó en compás de espera, porque dos diputados propusieron substituir el término “genocidio” por “extinción”, para evitar el pago de indemnización y el reconocimiento de los sobrevivientes Selk’nam, contrariando el “Informe de la Comisión de Verdad Histórica y Nuevo Acuerdo con los Pueblos Indígenas” (2003, 2008), que “definió como genocida la ocupación de la Patagonia Austral y Tierra del Fuego”.
- Cabe insistir en que se trató de un proceso planificado y sistemático, decidido en reuniones de las que ha quedado registro.– declaran los signatarios de la Carta Pública, para quienes la lucha contra la naturalización del exterminio en nombre del “progreso” procura “hacer un mínimo de justicia histórica con las víctimas, rescatar su memoria e incorporar su historia en los planes de estudio y en las políticas de la identidad a nivel local, regional y nacional”.
La parábola
Varias instituciones trabajaron para retomar la memoria histórica y jurídica de los Selk’nam. El Museo Regional recuperó, en 2012, en el Poder Judicial, el documento “Vejámenes infligidos a indígenas de Terra del Fuego” y realizó la exposición museográfica itinerante intitulada “El juicio”, compartiendo copia del sumario de 700 hojas conservado en el Archivo Nacional de Chile. La Universidad de Magallanes publicó una versión en la Biblioteca Digital de la Patagonia y transcribió artículos periodísticos de la época.
A partir de estos eventos, los datos históricos comenzaron a circular en diversos formatos: en la pieza de teatro “Kre-Chenen, agarrados de la luna”, en el documental dividido en dos capítulos de 30 minutos exhibido en telefilme, en versión radiofónica y en material didáctico en las escuelas. Los cantos Selk’nam grabados en cilindros de cera, en 1907, fueron ahora editados en CD por el Instituto Nacional de Lenguas Indígenas de Berlín.
La camisa de un equipo chileno de segunda división, del cual ya me considero ardoroso hincha, es un ejercicio de memoria, necesario especialmente en momentos en que a violencia contra los amerindios recrudece hoy, en Brasil, que vive un retroceso político sin igual.
Bolsonaro lamentó recientemente que a diferencia de la caballería norte americana, en Brasil no se consumó el exterminio de los indios. El historiador español escuchó algo similar en Argentina:
"Quizás el testimonio más terrible fue el de un descendiente de Alexander Mac Lennan, el mayor cazador de indios, que me dijo que aunque las matanzas de selk’nam que hicieron Menéndez, su abuelo y otros estuvieron mal, gracias a ellos hoy no hay indios y en Tierra del Fuego existe una absoluta tranquilidad".
Los Selk’nam y la camisa del Deportivo Magallanes están probando lo contrario. Así, lo que aconteció puede verse “como una parábola para estos tiempos angustiantes en que vivimos”, como me llamó la atención un antropólogo que trabajó con los Uitoto, citando Gananath Obeyesekere de Sri Lanka.