“E mesmo que toda a gente / fique rindo, duvidando / destas estórias que narro, /
não me importo: vou contente / toscamente improvisando / na minha frauta de barro”.
Luiz Bacellar (1928-2012)
O que Trump, Putin e Bolsonaro têm em comum? Antes de responder, fumo meu cachimbo à guisa dos comentaristas de política internacional de antanho, que exibiam suas fotos nos jornais com cachimbo e boina basca, o que lhes dava um ar de entendido no assunto e conferia credibilidade ao seu discurso, além de deixá-los, é claro, com a boca torta. Numa polêmica com um deles, Leon Trotsky o desqualificou, ironizando: “Esse cara, só porque fuma cachimbo, acha que pode explicar o que acontece no mundo”. Apesar disso, antes de escrever sobre a Assembleia Geral da ONU, por via das dúvidas, dou uma cachimbada em um petynguá, presente de um aluno Guarani.
Aviso, no entanto, que o tabaco inalado foi fornecido por seu Dino Sapateiro, do bairro de Aparecida, num final de tarde em que a Adalgiza, esplendorosamente bela na explosão dos seus 18 anos, desfilou pelo Beco da Indústria com um embrulho na mão. Foi em 1942, quando a Guerra Mundial interrompeu o abastecimento de Manaus e provocou a escassez de tecidos, obrigando as mulheres a economizar pano. As saias tiveram sua barra levantada e deixaram de ser folgadas para ficarem coladas no corpo. Vestindo uma saia dessas, sem anágua, que realçava a cintura fina de pilão e os quadris largos, Adalgiza – um violão - entrou requebrando na oficina do sapateiro:
- Seu Dino, quanto custa botar meia sola e lixar essa parte que faz calo no meu pé?
O sapateiro foi além da chinela. Avaliou minuciosamente, um olho no sapato e o outro nas pernas torneadas da Adalgiza que pareciam toco de amarrar onça. Descortinou a curva suave de seus lábios carnudos pintados com urucum por falta de batom na praça. Entreviu de esguelha os peitinhos empinados. Calculou na moeda da época:
- Vinte mil réis, mas não cobro nada e ainda boto um forro de cetim, se você me ajudar a arrumar a salinha lá de trás.
Palco do crime
Ela topou. Ele fechou a porta da rua e os dois se dirigiram ao quartinho dos fundos, pouco iluminado, empoeirado, as paredes com pintura descascando. No chão de cimento, pedaços de couro tingido em várias cores, latas de cola, ferramentas, fivelas, bolsas e maletas. O sapateiro, com sua cara de esfinge, agarrou Adalgiza à força, rasgou seu vestido, ela esperneava e gritava desesperadamente, mas o fundo da oficina dava para o igarapé de São Vicente, ninguém ouviu. Ele a estuprou e depois, com uma tira de couro, a estrangulou. Jogou o cadáver no rio. Mentiu no Tribunal, jurando que ela o seduziu e, arrependida, se enforcou.
Dizem que a única pessoa que ouviu detalhes do crime contado por Dino foi o padre Frederico Stratman que nada podia revelar, mesmo que decidisse romper o segredo inviolável da confissão, porque não entendera bulhufas do que lhe contara o pecador. Recém-chegado de Nebraska, nos Estados Unidos, para assumir a Paróquia de Aparecida, em 1943, o padre só sabia falar, em português, “Bom dia” e “Eu te absolvo de teus pecados”. Nada mais. O sapateiro, que era cabo eleitoral do governador Álvaro Maia, foi absolvido no confessionário e no Tribunal do Júri, sob a alegação de que “mulher que se dá respeito não é estuprada”. Os jurados eram todos homens. Homem é isso aí?
Até a tia Raimundinha, que depois entraria num convento de freira, concordava com a maioria da cidade comocionada, para quem o criminoso passou a ser a vítima da sedução, enquanto Adalgiza se tornava culpada da própria morte.
- Ela provocou. Fez por merecer – dizia tia Raimundinha, que jamais ousou pintar seus lábios com urucum e repetia a sordidez disseminada pela rádio e estampada nos jornais.
Eis aqui o que eu queria dizer: o mundo inteiro cabe no meu bairro, que já viveu tudo o que acontece ou ainda vai acontecer no planeta, o que me legitima como comentarista de política internacional, se uso, é claro, o cachimbo, concluindo que Trump, Putin e Bolsonaro têm em comum com o sapateiro o fato de imputarem às vítimas os crimes por eles cometidos.
Mentiras azuis
Criar uma “verdade” paralela ou fake é uma forma de governar desses três tristes tigres, empenhados numa campanha de desinformação. São “mentiras azuis” ditas em nome de um grupo para fortalecer os laços entre seus membros. Segundo levantamento cuidadoso feito em julho pelo Washington Post, Donald Trump havia feito mais de 20 mil declarações mentirosas desde que assumiu em 2017 - um fato sem precedentes na política americana. Sobre o coronavirus foram mais de mil mentiras, quase sempre fáceis de refutar. Acusado de 26 casos de assédio sexual, ele agiu como Dino sapateiro, acusando suas vítimas, da mesma forma que incriminou os negros por terem sido assassinados pela Polícia.
Idêntico artifício é usado por Putin, como no caso recente de seu opositor Alexei Navalny, autor de denúncias sobre a corrupção governamental e envenenado por um produto químico que é monopólio do Estado. Com um cinismo assustador e uma sem-vergonhice ofensiva à nossa inteligência, Putin – ex-agente da KGB - declarou que não vê necessidade de investigar o caso e mandou seu médico pessoal, Igor Mlchanov, culpabilizar a vítima, alegando que Navalny se envenenou de propósito ao tomar uma grande dose de pílulas e de ter ficado sem comer e beber, só para desgastar o Kremlin.
Masjirovska é o nome que os russos dão a essa forma de intoxicar a população, que não permite mais distinguir o que é verdade e o que é mentira. No Brasil, em 631 dias como presidente, Bolsonaro, que é um sub-trump de igarapé, já deu 1.716 declarações de mentirovska, segundo checagem feita pela equipe do “Aos fatos”, sem contar aquelas da campanha eleitoral, como a da “mamadeira de piroca”, feitas quase sempre em linguagem chula incompatível com o cargo que ocupa. Ele já atribuiu os incêndios aos defensores da floresta: organizações ambientalistas, Leonardo Di Caprio e esquerdistas. Agora, no discurso na Assembleia Geral da ONU, os incêndios passaram a ser obra de suas principais vítimas: índios e cabocos.
Os comentaristas especializados que fumam cachimbo já desmontaram uma a uma todas as declarações fraudulentas no discurso na ONU do Bolsonaro, um puxa-saco subserviente de Trump. Mas para que o capitão não passe por mentiroso pela milésima vez, uma dona de casa que só recebeu R$ 2,4 mil de auxílio emergencial, acaba de entrar na Justiça com pedido de pagamento da diferença dos US$ 1.000,00 (R$ 5.400,00) anunciados na Assembleia da ONU.
Se não houver reação como essa, tais mentiras repetidas à saciedade se tornam familiares. Elas só adquirem força porque existem pessoas desinformadas e bobinhas, como tia Raimundinha, que nelas acreditam.
Chamar esses três “estadistas” de tigres é comparação desairosa para o animal. Mas a analogia é válida apenas pelo caráter superpredador desse carnívoro solitário ameaçado de extinção. Os três são tristes, muito tristes, e os rastros que deixam com suas patas revelam uma selvageria que a História jogará na lata do lixo.
Posto que não estamos tratando aqui de política internacional, mas da barbárie e da bestialidade humana da qual cada um de nós entende um pouco, nem precisava fumar cachimbo e desgastar o petynguá guarani. Afinal, ceci n’est pas une pipe.
P.S. O evento será transmitido ao vivo no canal do youtube. Carol Proner destaca-se pelas diversas ações de resistência em favor da democracia e chama atenção para o fenômeno Lawfare, a guerra híbrida, sem armas, o uso perverso do direito como instrumento de opressão e dominação. É professora de Direito Internacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Doutora em Direitos Humanos pela Universidade Pablo Olavide na Espanha, membro da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD) e do Grupo Prerrogativas, além de autora de vários livros e artigos sobre direitos humanos, direito internacional e democracia.