A notícia da morte de J. Rosha me deixou nocauteado. Meu ex-aluno no curso de Jornalismo da UFAM, amigo querido, com quem compartilhei sonhos e envolvimento radical nas lutas indígenas pelo direito ao território, à cultura, à lingua. Ele militou em todas as frentes com as quais eu também estive comprometido: movimento indígena, Porantim, Cimi, jornalismo sindical, sindicato dos metalúrgicos.... Compartilho o que escrevi quando da morte de outro aluno, Eduardo Kuaray, guarani. "A morte de um aluno jovem é, para o professor que a ele sobrevive, como a morte de um filho: uma inversão antinatural, uma cilada do destino, uma emboscada da história. Assim como existe pai órfão de seu filho, existe professor órfão de seu aluno". Que Nhanderu o receba com todas as honras merecidas. O Taquiprati reproduz aqui a nota do CIMI Regional Norte em homenagem a um homem bom, que lutava pela justiça.
Nota de pesar pelo falecimento de José Rocha, assessor de comunicação do Cimi Regional Norte I
Informamos com profunda tristeza o falecimento, no início desta tarde, 10 de novembro de 2020, em Manaus, de José Honório Garcia Rocha (J. Rosha), jornalista e assessor de comunicação do Conselho Indigenista Missionário – Cimi Regional Norte I. Manifestamos nossa solidariedade a seus familiares e amigos, que abraçamos na dor dessa perda irreparável.
Rosha assumiu a assessoria de comunicação do Cimi Norte I em 1989, abraçando a causa indígena com coragem, dedicação e compromisso. Logo no início passou por uma prova de fogo. Foi envolvido na luta dos povos indígenas no Rio Negro, no contexto do projeto Calha Norte, que propunha a demarcação das terras indígenas na forma de “Colônias Indígenas”, reduzindo drasticamente o território tradicional para favorecer empreendimentos minerais e outros interesses de terceiros na região.
Os militares, temerosos que a voz das lideranças indígenas reunidas na Assembleia em Taracuá, a favor de seus direitos e contra o esbulho de suas terras, se fizesse ouvir, conduziram Rosha, junto com outros companheiros do Cimi, até a sede do município de São Gabriel da Cachoeira, impedindo-o de fazer a cobertura jornalística para a qual tinha sido convidado.
Ao invés de se deixar intimidar, continuou repercutindo a voz das comunidades indígenas através do “Informativo Calha Norte” do Regional do Cimi, revelando as estratégias anti-indígenas do governo, até que a luta dos povos indígenas da região pela demarcação integral de suas terras fosse vitoriosa.
Ao longo dos mais de 30 anos no Cimi Norte I, Rosha ajudou a alimentar e impulsionar numerosas campanhas a favor da demarcação e proteção de terras indígenas e por políticas adequadas e específicas de saúde e educação. Bem como repercutir denúncias indígenas de violação de seus direitos e de outros temas de interesse das comunidades.
Num momento em que as lutas dos povos indígenas recebiam pouca atenção, Rosha contribuiu, com suas reportagens, para visibilizar a realidade das aldeias e amplificar as vozes dos povos originários da Amazônia, sempre primando pela qualidade e pela precisão de suas apurações.
Seu trabalho contribuiu diretamente para trazer ao conhecimento do público graves situações que, de outra forma, permaneceriam esquecidas, invisíveis aos olhos da sociedade não indígena. Para isso, não hesitou em percorrer os longuíssimos caminhos amazônicos, sendo muitas vezes acometido pela malária, atrás das informações junto aos povos. Um empenho também expresso em suas matérias tratando dos perigos que rondam os povos em isolamento voluntário.
Rosha graduou-se em Jornalismo pela Universidade Federal do Amazonas (Ufam), no ano de 1986, e sua trajetória expressa a coerência de uma pessoa comprometida com as causas nas quais acreditava. A causa indígena, à qual se dedicou por mais de três décadas, foi uma delas.
Além do Cimi, Rosha trabalhou como assessor de comunicação do Sindicato dos Metalúrgicos do Amazonas, onde começou editando o jornal da categoria, e atuou durante muitos anos e de forma bastante intensa no Sindicato dos Jornalistas do Amazonas, sua própria categoria, onde foi diretor.
Seu compromisso com as lutas populares complementava-se com a paixão pela causa indígena. Causa que sistematiza o mundo que era vislumbrado por Rosha: mais solidário e generoso, um lugar onde todas as formas plurais de entender a vida possam ter seu espaço garantido e respeitado.
Hábil repórter, José Rocha também foi um talentoso cartunista e ilustrador, qualidade que exerceu na elaboração e ilustração de materiais de formação sobre os direitos indígenas. Foi nas assinaturas das charges e cartuns que adotou a alcunha ‘J. Rosha’, com a qual assinava também seus textos.
Incansável e sempre disposto a ampliar o alcance de uma comunicação popular e autônoma, Rosha colaborou com a formação de comunicadores indígenas e, nos últimos anos, também assumiu o programa de rádio “A Voz dos Povos Indígenas” na Rádio Comunitária A Voz das Comunidades, em Manaus. Também realizou um documentário, entre 2011 e 2012, sobre o descaso com a saúde indígena no Amazonas. De 1989 até os dias de hoje, Rosha contribuiu constantemente com o jornal Porantim, veículo de muitas de suas matérias.
Depois de tantas andanças e intensa atividade como jornalista e militante, Rosha acumulou alguns problemas de saúde. As dificuldades de visão causadas pela diabetes, doença que o acompanhava há alguns anos, não o impediram de seguir ativo em seu trabalho até os últimos dias de sua vida, aos 56 anos. Quando a diabetes afetou sua visão, passou a ampliar as letras do computador, para escrever, e a utilizar uma lupa para as leituras.
Sua derradeira cobertura foi sobre a violência perpetrada contra indígenas e ribeirinhos no rio Abacaxis. A fez mesmo enfermo. Durante esses meses de pandemia do novo coronavírus, Rosha também denunciou o descaso e o negacionismo do governo federal responsáveis por, especialmente em Manaus, provocar uma onda devastadora de mortes e doentes.
Pode ter sido a covid-19, por sinal, que tenha maltratado ainda mais o organismo do Rosha. Os exames iniciais deram negativo para a doença, mas ele seguia apresentando todos os sintomas. Por consequência da diabetes, as funções cardíacas e renais do jornalista estavam comprometidas a ponto dele ter que se submeter à hemodiálise.
Os sintomas da covid-19, possivelmente, agravaram a situação, e com o quadro de saúde frágil o nosso querido Rosha não resistiu a essa batalha, num ano em que muitos guerreiros como ele também foram vencidos.
Rosha deixa um importante legado para o Cimi, para os povos indígenas e para o jornalismo, especialmente o voltado à defesa dos direitos humanos e da causa indígena. É uma perda precoce e irreparável, mas o que fica é o exemplo de um jornalista que dedicou toda sua capacidade, intelecto e energia àquilo que acreditava, prestando um inestimável serviço aos povos, comunidades, trabalhadores e trabalhadoras dos estados da Amazônia.
Manifestamos nosso profundo reconhecimento e gratidão ao nosso companheiro Rosha, por sua dedicação e firmeza, e inspirados por ele, reafirmamos nosso compromisso firme com a defesa da vida e dos direitos dos povos indígenas.
Conselho Indigenista Missionário
10 de novembro de 2020