CRÔNICAS

Os Tupinólogos e a Semana de 22: Tupy or not Tupy?

Em: 20 de Fevereiro de 2022 Visualizações: 4265
Os Tupinólogos e a Semana de 22: Tupy or not Tupy?

“Esses índios são muito gozadores, gostam de rir e de se burlar dos outros,

são extremamente brincalhões” (Theodor Kock-Grunberg. 1916). 

Quem ouviu vozes indígenas no Theatro Municipal de São Paulo naquele fevereiro de 1922? Essa pergunta pode ser feita com distanciamento crítico agora, cem anos depois da Semana de Arte Moderna, quando eclodem em todo o país eventos comemorativos na mídia, centros culturais e universidades para avaliar as projeções do movimento modernista na cultura brasileira. Um deles organizado pela PUC-SP discutiu, nessa sexta (18), “A presença indígena na arte brasileira” numa mesa com os debatedores Daniel Munduruku, João Paulo Tukano e esse vosso escriba aqui.

Se tivesse de dar título à minha fala escolheria o que encabeça essa crônica. Tomo emprestado o Tupy or not Tupy, that is the question” do Manifesto Antropófago de Oswald de Andrade, de 1928, não para discutir o possível caráter caricatural da representação do “índio” pelos modernistas, mesmo reconhecendo sua inegável contribuição para a cultura brasileira. Recentes artigos de Italo Moriconi, José Miguel Wisnik e Luiz Armando Bagolin já trataram do tema com mais propriedade.

Incorporo no título os tupinólogos – denominação usada para designar aqueles intelectuais que coletaram narrativas indígenas na segunda metade do sec. XIX, quando o romantismo nativista já dava sinais visíveis de esgotamento. A ação deles se prolongou pelas duas primeiras décadas do sec. XX, às vésperas da Semana de 22. Eles registraram por escrito histórias narradas oralmente quase todas na primeira língua de comunicação interétnica entre os brasileiros - o Nheengatu e as traduziram ao português. Na minha fala, resumi a trajetória de sete deles.

Riquezas da Amazônia

O mais apaixonado foi, talvez, Couto de Magalhães (1837-1898), mineiro de Diamantina, nascido na fazenda de gado de seu avô, em Diamantina (MG) onde passou sua infância embalado por “lendas tocantes e poéticas, metade cristãs, metade indígenas” contadas pelos vaqueiros. Formado em direito, procurou “as cores do país” não só em arquivos e bibliotecas, mas também em dez viagens por grotões do Brasil profundo, quando ouviu “lendas tupi” que transcreveu em - O Selvagem - editado em várias línguas: francês, inglês, alemão e italiano. Seu interesse cresceu, quando foi nomeado presidente da Província do Pará pelo Imperador Pedro II.

Olhem só o que aconteceu. No navio que o conduziu ao Pará, debruçado no convés, viu lá embaixo, próximo à abertura do porão, um tripulante sem camisa e descalço, falando e gesticulando no meio de uma roda que o ouvia com atenção e de vez em quando explodiam gargalhadas. Intrigado, desceu para ouvi-lo, mas nada entendeu: a narrativa era em Nheengatu. Ficou deslumbrado com a tradução. Para conhecer essa literatura oral, decidiu aprender a Língua Geral e até escreveu uma gramática para ensiná-la.   

O curioso é que processo similar ocorreu com outros tupinólogos.  O geólogo canadense Charles Hartt (1840-1878), veio na missão científica do naturalista Louis Agassiz, inventariar as riquezas da Amazônia. Na parada do navio em Óbidos, à tardinha, viu uma velha senhora contando histórias em Nheengatu na calçada de sua casa, cercada por crianças e jovens. Quando traduziram as histórias, fascinado, aprendeu a língua e coletou mitos amazônicos com o jaboti como personagem central. Descobriu que essa era a riqueza mais importante da região: sua literatura repleta de sabedoria e a língua usada para fazê-la circular.  

Poranduba Amazonense

Os dois não foram os únicos. Aconteceu também com o conde italiano Ermano Stradelli (1852-1926), nascido num castelo em Borgotaro. Sua intenção era visitar a Amazônia durante algumas semanas. De noite, numa maloca no Rio Negro, deitado em sua rede, ouviu os índios contarem histórias, o que o fez modificar seu plano ao se inteirar da tradução. Passou o resto da vida no Amazonas até a sua morte em Manaus.

Décadas antes de Malinowski sistematizar suas reflexões sobre a observação participante, Stradelli intuiu que o pesquisador decidido a conhecer uma sociedade que lhe é estranha, devia partir do interior dela, impregnando-se da mentalidade de seus integrantes e esforçando-se para pensar na língua deles. Aprendeu a língua, fez um dicionário Nheengatu-Português-Nheengatu, registrou as tradições, entre elas o Mito do Jurupari e as “lendas dos Tariana” , entre uma e outra cuia de caxiri.

Outro que não resistiu aos encantos das narrativas orais foi o botânico mineiro João Barbosa Rodrigues (1842-1909), filho de um comerciante português. Professor do Colégio Pedro II, no Rio de Janeiro, mudou para Manaus em 1872, contratado para criar o Museu Botânico. Aprendeu o Nheeengatu e nessa língua coletou cantigas e contos avaliados por ele como “flores da imaginação de um povo” publicadas no Poranduba Amazonense. Quando perguntava o nome de uma planta dele desconhecida, respondiam com uma história na qual a planta era descrita. Percebeu que em sociedades orais, histórias constituíam as enciclopédias populares.

Temos ainda Brandão de Amorim (1865-1926) nascido em Manaus, filho de Alexandre Amorim, comerciante português criador da companhia que fez a navegação direta de Liverpool a Manaus. Ele publicou 35 narrativas do alto Rio Negro em edição bilingue, sem mencionar que haviam sido recolhidas por Maximiano José Roberto, índio descendente dos Manaú e dos Tariana do rio Uaupés. Se a denúncia de Stradelli procede, foi uma ato de pirataria editorial, o que não anula a importância de Amorim.

Literaturas da floresta

Finalmente cabe citar Theodor Kock Grunberg (1872-1924), etnólogo alemão, que ouviu as narrativas dos índios de Roraima, em suas viagens pelo norte do Brasil e pela Venezuela entre 1911 e 1913. Ele coletou milhares de objetos de arte indígena hoje em museus de Berlim, Hamburgo e Leipzig. Gravou num fonógrafo músicas e cantos Makuxi, Taurepang, Wapishana, Ingarikó e Patamona. Tirou fotografias, ouviu histórias e deixou tudo isso registrado no livro “De Roraima ao Orenoco”, publicado em cinco tomos na Alemanha em 1916-1917.

A pergunta que faço é: por que vozes indígenas gravadas pelos tupinólogos ficaram de fora da Semana de 22 e de seus desdobramentos, com raras exceções? Uma delas foi Raul Bopp, autor de Cobra Norato que não coletou nenhuma narrativa oral, mas teve acesso ao registro escrito de algumas delas. Deslumbrado, escreveu:

“Foi uma revelação. Eu não havia lido nada mais delicioso. Era um idioma novo. A linguagem tinha, às vezes, uma grandiosidade bíblica. No seu mundo, as árvores falavam. O sol andava de um lado para outro. Os filhos do trovão levavam, de vez em quando, o verão para o outro lado do rio”.

A outra exceção foi Mario de Andrade, que foi ao campo em viagens pelo Norte e Nordeste em 1927-1929 e ouviu histórias, causos e cantigas dos ribeirinhos da Amazônia. No entanto, não fosse ele leitor em língua alemã, não teria escrito Macunaíma, porque até hoje, em 2022, não foram publicados em português os cinco tomos de Kock Grunberg, o que demonstra o desinteresse do Brasil. Somente em 2006 a UNESP editou o primeiro tomo e parou por aí. É significativo que um escritor brasileiro precise ler alemão para tomar conhecimento de narrativas de povos indígenas no Brasil.

De qualquer forma, a literatura ameríndia quase nunca foi tratada com seriedade. Considerada como simples matéria-prima etnográfica, só passa à categoria de arte “quando devidamente trabalhada pelas mãos engenhosas de intelectuais não indígenas” – como critica Lúcia Sá no seu “Literaturas da Floresta”. Ela reflete sobre o que se ganha quando se leva a sério a literatura oral indígena, mas também o que se perde quando ela é ignorada ou desprezada. O Brasil precisa ouvir mais tripulantes sem camisa, velhas senhoras na porta de casa, contadores de histórias nas malocas. Tupy or not Tupy that is the question.

P.S. - As falas da mesa sobre a literatura indígena no evento da PUC-SP, moderadas pela dra. Beth Brait, podem ser vistas em https://www.youtube.com/watch?v=gcuAmgd6YwA

Quem tiver 15 minutos e quiser ir além do que é tratado no ENEM e no vestibular sobre a arte modernista brasileira, vale a pena ouvir Daniel Munduruku e João Paulo Tukano, que merecem uma coluna dedicada às suas respectivas falas.

O Canal Futura na série de entrevistas realizadas por Sandra Benites reproduziu também na sexta-feira (18) outra versão do que aqui aparece escrito: https://canaisglobo.globo.com/assistir/futura/entrevista-artes-22/v/10288561/

 

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18 Comentário(s)

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Rodrigo Wallace comentou:
27/02/2022
Muito instigante essa sua reflexão, professor! Podemos pensar que o reconhecimento dos direitos dos povos originários também passa pelo campo da arte.
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rodrigo martins comentou:
25/02/2022
Foi excelente o evento realizado pela PUC que o professor Bessa participou. Fiquei curioso com essa questão do livro do Kock Grumberg ainda não ter sido traduzido ( os outros 4 tomos) pela Unesp. Seria muito legal se algum professor ou professora de pós-graduação trabalhasse com algum orientando sobre esse questão (para ler esses 5 tomos e conhecer um pouco mais sobre eles) como também os materiais inéditos que a viúva do Charles Hartt deixou no Museu Nacional sobre contos indígenas em Nheengatu (seria necessário talvez nesse caso algum candidato que tivesse domínio em alemão e Nheengatu para realizar os mesmos). E gostei também do comentário do Daniel Munduruku que falou que nunca se pergunta para uma criança Munduruku o que ela vai ser como crescer, porque ela não será nada, ela já é tudo o que deveria ser. Quem não teve a oportunidade de assistir o evento vale muito a pena. Um abraço querido professor.
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Deise Henrique comentou:
22/02/2022
É maravilhoso saber dessa linda história, e como sou falante do Nheengatu para mim isso é motivo de orgulho, mais uma vez parabéns
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Pedro Libanio comentou:
21/02/2022
Estou trabalhando isso nesse exato momento... obrigado pela lembrança.... em breve terei mais noticias.
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Ana Silva comentou:
21/02/2022
Excelentes reflexões, Bessa.
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Fala ai Brasil comentou:
20/02/2022
Versão impressa publicada em FALAIBRASIL -https://falaaibrasil.com.br/noticia/21482/os-tupinologos-e-a-semana-de-22-tupy-or-not-tupy.html
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D24AM - Politica comentou:
20/02/2022
Versão impressa publicada em D24AM - Politica - https://d24am.com/politica/os-tupinologos-e-a-semana-de-22-tupy-or-not-tupy/
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Serafim Correa comentou:
20/02/2022
Publicado no Blog do Sarafa - https://www.blogdosarafa.com.br/os-tupinologos-e-a-semana-de-22-tupy-or-not-tupy/
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Tania Pacheco comentou:
20/02/2022
Publicado em COMBATE - RACISMO AMBIENTAL https://racismoambiental.net.br/2022/02/20/os-tupinologos-e-a-semana-de-22-tupy-or-not-tupy-por-jose-ribamar-bessa-freire/
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Rodrigo Octavio comentou:
20/02/2022
Mas tem outro livro do Kock Grunberg que a Editora da Universidade do Amazonas lançou quando Ernesto Renan era por ela responsável.
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José Bessa comentou:
20/02/2022
Sim, Rodrigo, é o livro “DOIS ANOS ENTRE OS INDIGENAS” do Kock Grunberg lançado antes em dois volumes na Colombia e que na edição em português teve a tradução do padre Casimiro, salesiano.
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Ana Carla Bruno comentou:
19/02/2022
Excelente sociogênese!!! Muito obrigada pela linduraaaaa de texto !!!
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Celeste Correa comentou:
19/02/2022
Mano, muito interessante esse percurso histórico que fizeste na crônica sobre a literatura indígena, totalmente desconhecido pra mim! Ao ler a crônica eu me lembrei de uma entrevista da Ana Gonçalves Magalhães, diretora do Museu de Arte Contemporânea, no ano passado, onde ela fala que o consumo de arte no Brasil é elitizado. Esse resgate histórico que fazes na crônica e a fala da indígena Guarani, a Sandra Benites, que eu assisti ontem no canal Futura, apresentando a entrevista "A Arte-22, me levam a pensar que não é apenas o consumo de arte que é elitizado, mas o reconhecimento e a valorização da arte também têm esse viés. A nossa construção histórica mostra o descaso com que sempre foi tratada a literatura indígena, né! A Sandra Benites abriu o programa falando da importância de descolonizar a arte. Eu penso que essa descolonização passa pelas pessoas envolvidas na tomada de decisão, que precisam conhecer profundamente não só a arte indígena, mas, também, a forma não mercantilizada como os indígenas se relacionam com a arte.
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José Marajó Varela comentou:
19/02/2022
se vcs. nunca leram "Rio Babel, a história das línguas na Amazônia" de José Ribamar Bessa Freire", nosso amigo professor José Bessa; não percam mais tempo. Bora impulsionar a petição ao governador para recuperar a casa de Dalcidio Jurandir Jurandir em Cachoeira Marajó e tragam depressa o mestre manauara a fim de promover a nossa boa língua Nheengatu.
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Eva Seiberlich comentou:
19/02/2022
Professor, muito obrigada pelo material. Não deixarei de incluir as falas do Daniel e Paulo Tukano no conteúdo das aulas para o Enem e Vestibular dos meu alunos. Creio que o livro do Theodor consta na Biblioteca da UFRR e na Biblioteca Nenê Macage.
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FELIPE JOSE LINDOSO comentou:
19/02/2022
Bessa, não existe uma tradução do Koch-Grunberg editada pela UFAM? Quando o Renan Freitas Pinto era o diretor? Texto fantástico, mano.
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Jose Bessa comentou:
19/02/2022
Felipe, a edição da UFAM não é do livro "De Roraima ao Orenoco", mas de outro livro "A distribuição dos povos entre Rio Branco, Orinoco, Negro e Japurá.
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Sirlene Bendazzoli (via FB) comentou:
19/02/2022
Perfeito caro professor José Bessa !! Como precisamos ouvir, aprender e divulgar as línguas e as histórias dos povos Indígenas! Obrigada.
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