.Uma conversa sigilosa gravada no domingo passado pelo meu sobrinho Pão Molhado na fila da 41ª Seção Eleitoral de Manaus, no bairro de Aparecida, pode esclarecer um enigma que deixou perplexos os cientistas políticos nacionais e estrangeiros. Como é que o candidato Alckmin, entre os dois turnos, perdeu 2.425.239 votos? Por que quase dois milhões e meio de eleitores o abandonaram em menos de um mês?
A lógica indicava que Lula e Alckmin cresceriam no segundo turno, pois haveria milhões de votos disponíveis para serem redistribuídos entre os dois: os dos seis concorrentes eliminados no primeiro turno, além dos brancos e nulos. Bastava, portanto, cada um somar aos próprios votos, já conquistados, alguns desses votinhos. Ora, Alckmin não apenas não conquistou um só eleitor novo, como perdeu 2.425.239 que já eram seus e ninguém tascava. Meu Deus do céu, o que aconteceu?
Essa questão, que dá tese de doutorado, está intrigando os analistas políticos. Mas ela pode ser respondida, se a gente se infiltrar junto com o Pão Molhado na fila da 41ª Seção, na última sala do Grupo Escolar Cônego Azevedo, onde está a famosa “urna dos malucos”. Nela votam, entre outros, os cidadãos Rubem Rola, Ana Piu-Piu, Ângela Careca, Those-Those, Neide Pipoca, Dalva Manicure, Bambi e Cida da Glória – todos eles malucos-beleza.
Na “urna dos malucos” votam ainda ex-moradores (nem todos tantãs), que mudaram de bairro, mas não de domicílio eleitoral. Preferiram manter o título lá, na gloriosa 41ª. No dia da eleição, eles se deslocam de outros bairros em romaria à Aparecida, só para mostrar seu olhar, seu olhar, seu olhar, transformando-o em dia de festa, com o reencontro de pessoas que não se viam há anos. Gravamos um desses encontros, de interesse para a ciência. Antes de apresentá-lo, façamos um fleche-beque.
Poema do adeus
Estamos em 1959 ou 1960. No bairro de Aparecida, em Manaus, numa ruela conhecida como Beco da Bosta, nº 34, há um chalé de madeira, de dois andares. Lá dentro, na parte de cima, moram dona Maria Rosa, sua filha Socorro e dois sobrinhos: o Neidão e o Neidinha, que são uma brasa, mora! No térreo, vive dona Albertina com sua filha Das Dores, brotinho encantador, que estuda o curso pedagógico no Instituto de Educação do Amazonas.
Diariamente, Das Dores estende a roupa no quarador de ripa do quintal. Quando ela se curva aqui embaixo, o Neidinha fica abicorando seus peitinhos cor-de-rosa lá da janela de cima. Os dois se entendem, trocam olhares, suspiros e sorrisos cúmplices. Surge uma paixão fulminante e avassaladora que é reprimida por dona Albertina. A velha usa armas pesadas, alegando que o Neidinha não estudava - o que era verdade, nem trabalhava - o que era mentira. Ele fazia biscate como vendedor de balas na porta do Cine Guarany.
A perseguição foi cruel. Proibida de botar roupa pra quarar, Das Dores foi substituída por Dona Albertina, cujos peitos não tinham biquinho rosado, o que gerou protestos veementes do Neidinha. Lá de cima, ele se esgoelava, cantando:
"Proibiram que eu te amasse, proibiram que eu te visse,
proibiram que eu saísse, ou perguntasse a alguém por ti”.
E arrematava:
"E daí e daí? Daí por mais cruel perseguição, eu continuo a te adorar".
Com um topete parecido ao do Elvis Presley, Neidinha comprou um violão e, com ele, fazia serenatas, esgotando todo o repertório de dor de corno da rádio Baré. Arrumaram um código para dona Albertina não desconfiar. O diálogo entre os dois namorados se dava através das músicas. Lá de cima, ele chorava:
"Quem é que não sofre por alguém? Quem é que não chora uma lágrima sentida?"
"Deus, meu Deus, traga pra junto de mim, este alguém que me faz chorar, que me faz sofrer tanto assim".
Lá de baixo, Das Dores respondia, suplicando ao amante que escutasse seu lamento em forma de canção:
“Ai, só você não vê, na minha vida, falta você.
Nos meus olhos está faltando a luz do seu olhar,
no meu peito está morando uma saudade em seu lugar”.
Neidinha, declarando seu ciúme do sol, do luar e do mar, soluçava:
“Tu és a criatura mais linda, que meus olhos já viiiiram.
Tu tens a boca mais linda que minha boca beijou”.
Com ajuda de Orlando Dias, Chico Alves, Elizeth, Dalva de Oliveira e Anísio Silva, os bilhetes em do-ré-mi subiam e desciam no velho chalé de madeira. Das Dores jurava que não era capaz de ser feliz nos braços de um amor qualquer, e perguntava angustiada: “Por onde anda quem me quer, quem não me quer onde andará?”.
Até que Neidinha teve um pressentimento. Imitando a voz anasalada de Miltinho, gemeu uma canção de despedida:
- “Caminho, meu caminho, e nos lugares que passei, as pedras do caminho são o pranto que chorei. Escondo em minhas mãos, carinhos que eram seus, e guardo sua voz, no poema do adeus”.
Detrás do Bingo
Era setembro. O “Serviço de Amplificação A Voz Quermesse de Aparecida” tocava Waldik Soriano. Das Dores, distraída, tomava rala-rala de groselha, quando ouviu um cochicho:
- Assim que tua mãe se recolher, me encontra detrás do Bingo”.
Ela foi. Ali, no escurinho, ele saboreou o perfume de gardênia na boca da amada, cujo corpo é uma cópia de Vênus e provoca inveja nas mulheres. Os últimos beijos ardentes foram trocados ali. Logo depois, dona Albertina mudou de bairro e não deu pra ninguém seu novo endereço.
Hoje, Das Dores, professora aposentada, mora no Japiim, tem vários filhos com um mecânico. Já Neidinha, casado com Perpetinha, é dono de uma taberna no ‘Buracão’, na Cidade Nova. Depois de tanto tempo, no domingo passado, os dois voltaram a cruzar seus destinos na fila da urna de Aparecida. Ele, com o coração batendo tuc-tuc:
– Dorinha, nesses 46 anos, nunca deixei de pensar em tu todos os dias.
Ela, quase sem fôlego:
- Acredito. Eu também. Diariamente.
Os ossos de Albertina, tloque-tloque, no cemitério do Tarumã. Conversavam em voz baixa, relembrando juras de amor, enquanto a fila avançava. Pão Molhado, emocionado, presenciou a cena e notou que os olhos dos dois eram brasas que escondiam ainda fagulhas da antiga paixão.
- Se você ficar viúva, ainda pode casar, porque tá com tudo encima.
No final, já quase na boca da urna, ele revelou sua intenção de voto:
- “Alckmin”.
Ela falou: - “Nesse lesão? Nããão! Uma coisa, pelo menos, podemos fazer juntos. Vota no Lula que depois – ela disse rindo – te encontro detrás do Bingo”.
Neidinha saiu da urna, assoviando uma canção que a nova geração desconhece. Por isso, Pão Molhado mostrou a fita gravada para suas nove tias. Elas fizeram uma “junta médica” e conseguiram identificar a letra. Era uma música de Pery Ribeiro, que diz:
“Por amor, fiz aquilo que você me pediu”.
Mataram a charada. O voto, que é secreto, foi aqui revelado.
A micro-sociologia, para explicar a floresta, analisa a árvore. Se a gente estuda um bairro, mais outro bairro e mais outro, acaba apreendendo a cidade inteira. Ocorre o mesmo com os votos. Para entender 2.425.239 eleitores, é preciso começar por um deles. Eu e Pão Molhado fizemos nossa parte numa urna do bairro de Aparecida. . Agora só falta explicar os 2.425.238 restantes.
Uma coisa é certa: a TV Globo e os institutos de pesquisa jamais entenderão aquilo que Neidinha, Das Dores, Nestlé, Caldo Maggi, Zezé di Camargo e Luciano sabem. O que move o eleitor “é o amooooor”, que tempera a vida, transporta montanhas e ganha eleição.