“Não perguntes por quem os sinos dobram, eles dobram por ti”. (John Donne. 1624)
Não perguntes por quem os sinos bimbalharam no Amazonas em dezembro de 1959. A resposta está no texto que então escrevi para o concurso de redação sobre o Natal organizado pelo diretor do seminário redentorista de Coari, padre Francisco Hirsch. A frase inicial era bombástica:
- É natal, os sinos bimbalham festivamente.
Com cara de poucos amigos, o padre diretor, que era o único membro da comissão julgadora, interrompeu a partida de pingue-pongue que eu disputava na hora do recreio e me chamou ao seu escritório, onde havia uma pilha de papéis escritos por nós, seminaristas:
- Nunca mais escreva ou fale essa palavra – disse com voz ríspida, fazendo-me sentir como um condenado no Tribunal da Inquisição.
Rasgou e jogou os pedaços do meu texto na lata do lixo. Insinuou que bimbalhar era pecar contra a castidade, algo equivalente ao gesto pornográfico e machista que o goleiro argentino Martínez faria mais de 60 anos depois, no Catar, com a Luva de Ouro em frente às suas duas bolas, maculando assim uma merecida vitória.
O português, falado com sotaque atroz pelo Father Francis Hirsch, não era sua língua materna, mesmo assim ele se autonomeou sentinela responsável pelo patrulhamento daquilo que considerava como transgressão e delito no idioma. Seu lema era: vigilate et orate. Vigiai e orai. E como ele vigiava!
O sino repica
Mas de onde tirou ele que bimbalhar transgredia o 6º mandamento? Do catecismo não era. Seria de algum penitente anônimo que lhe sussurrara no segredo do confessionário haver bimbalhado ou bimbado? Pouco provável. Até onde eu sei, esse não era um termo usado na época, muito menos em Coari. Além disso, a “imoralidade” não faria sentido, nem que a frase fosse “o sino repica”.
Meu querido amigo, o teólogo Hans Alfred Trein, no comentário abaixo, aventa a seguinte possibilidade: se o Father Francis Hirsch era de origem alemã – de fato era - então ele fez uma transliteração direta, pois em alemão existe um verbo popular (bimbern) com o sentido por ele atribuído ao "bimbalhar".
No meu caso, eu havia tirado bimbalhar de algum texto. Qual? Sabe Deus. No seminário, havia três tipos de leitura com espaços bem marcados. Uma no refeitório, quando escutávamos calados o que alguém lia em voz alta durante o almoço. As outras duas eram feitas em forma individual e silenciosa: a profana na sala de estudos e a sacra, na capela, ambas dotadas de escaninhos pessoais, onde cada um guardava o livro que estava lendo.
Posso ter lido bimbalhar no livro que deixei reservado lá na capela com o título Flos Sanctorum escrito com minha letra na capa improvisada em folha de papel almaço. Podereis objetar que canonizados não bimbalham, mas eu vos digo que era uma trapaça. Uma camuflagem. Não se tratava da vida exemplar de santos, mas das Aventuras de Tom Sawyer de Mark Twain, que eu queria continuar lendo no local de reza, o que estava proibido. O padre descobriu e me deu uma surra – ele batia forte – e me reprovou em comportamento.
A leitura é “uma das formas da felicidade” como definiu Jorge Luís Borges, mas o padre diretor, baseado no princípio “diz-me o que lês e te direi quem és”, controlava a nossa felicidade até na sala de estudo. Lá, só era permitido ler romances traduzidos de autores estadunidenses e ingleses que passaram pelo crivo da censura clerical. Jorge Amado, nem pensar. Personagens do autor baiano costumam bimbalhar.
Imagino que posso, então, ter encontrado o bimbalhar numa versão em português da Carta do Pai Natal que Mark Twain escreveu à sua filha. Mas nem sei se na época já havia sido publicada. O que circulava entre nós era a conhecida tradução de Monteiro Lobato de “For whom the bells tolls” de Hemingway com o título de “Por quem os sinos dobram”.
Fantasma do Natal
Sei que o dobrar do sino é sempre fúnebre e anuncia a morte de alguém, como nesta obra de Hemingway, que retrata os horrores da Guerra Civil Espanhola. Ele se inspirou no poema do pastor inglês John Donne e concluiu que os sinos dobram mesmo é por todos nós, os vivos, na medida em que cada ser humano, ao morrer, leva consigo fragmentos da humanidade da qual fazemos parte.
- As palavras têm um peso muito grande, elas podem tanto bendizer como amaldiçoar – escreve Charles Dickens em “O Natal do Avarento” lido no refeitório. Lá, o personagem do velho Ebenezer Scrooge, o unha-de-fome dono de um armazém, mergulha em sua mesquinha e sovina solidão. Não lembro, porém, se neste romance os sinos do fantasma do Natal bimbalham ou dobram.
Afinal, dobrar ou bimbalhar? Quando é para celebrar a festa e a alegria, o sino soa, ressoa, toca, repica, tilinta, badala, tange e até bate como no “sino pequenino, sino de Belém” para anunciar que “já nasceu o Deus menino para o nosso bem”. Mas os sinos jamais dobram no Natal. É isso. No Natal, jingle bells. No velório, the bells tolls.
Perdoemos o Father Director, ele não sabia o que fazia. Morreu radiante com a missão cumprida. Intrépido e mórbido combatente, reprimiu uma criança de 12 anos que, por via das dúvidas, apagou desde então de seus textos o bimbalhar tão bonito, sonoro e badalativo. Somente agora, neste natal, é que esse verbo se faz carne e habita entre nós.
Com certo sabor de desforra e sem medo de ser feliz, retiro da lata de lixo os pedaços do texto rasgado há mais de 60 anos para desejar Feliz Natal aos raros leitores, que só chegaram até aqui porque têm tempo a perder (e isso é um elogio aos que têm tempo a perder).
No céu, brilha uma estrela. Feliz Natal, com sinos bimbalhando, é claro. Por quem bimbalham? Por você, desocupado leitor, por nossa humanidade resgatada nesta alegre e esperançosa festa da cristandade.
Nenhum sino bimbalhou nessas quinze crônicas sobre o Natal:
- 2021 - Papai Noel: músicas de natal nos trópicos https://www.taquiprati.com.br/cronica/1619-papai-noel-musicas-de-natal-nos-tropicos
- 2020 - Urda Klueger: a vovó, o Natal e outros bichos https://www.taquiprati.com.br/cronica/1561-urda-klueger-a-vovo-o-natal-e-outros-bichos
- 2018 – A língua de Jesus: a necropolítica - https://www.taquiprati.com.br/cronica/1430-a-lingua-de-jesus-a-necropolitica
- 2017 – Memórias do Melo Merenda: o mau “velhinho” - https://www.taquiprati.com.br/cronica/1375-memorias-do-melo-merenda-o-mau-%E2%80%9Cvelhinho%E2%80%9D
- 2014 – Pedaços de outros Natais - https://www.taquiprati.com.br/cronica/1120-pedacos-de-outros-natais
- 2011 - Manaus – berço de escritores alternativos - https://www.taquiprati.com.br/cronica/952-manaus-berco-de-escritores-alternativos
- 2010– Natal com Bolo e Bola http://www.taquiprati.com.br/cronica/896-um-natal-com-bolo-e-bola
- 2009 - O revólver, o rabo quente e o time de tucumã https://www.taquiprati.com.br/cronica/838-o-revolver-o-rabo-quente-e-o-time-de-tucuma-quidoca
- 2005 – Glória nas alturas - https://www.taquiprati.com.br/cronica/211-gloria-nas-alturas
- 2004 – Tantos natais, tantas crônicas, quanta injustiça http://www.taquiprati.com.br/cronica/262-tantos-natais-tantas-cronicas-quanta-injustica
- 1996 – Na ceia de Natal, políticos amazonenses juntam panelas http://www.taquiprati.com.br/cronica/371-ceia-de-natal-de-politicos-amazonenses-juntando-panelas
- 1993 – O Saco do Papai Noel de Igarapé http://www.taquiprati.com.br/cronica/530-o-saco-do-papai-noel-de-igarape
- 1988 – Diário de tantos natais http://taquiprati.com.br/cronica/640-diario-de-tantos-natais
- 1986 – Natal sem peru e pirão http://www.taquiprati.com.br/cronica/669-natal-sem-peru-e-pirao
- 1985 - Neve em Natal, presépio em Belém http://www.taquiprati.com.br/cronica/716-neve-em-manaus-presepio-em-belem
P.S. David Abreu Leandro: O rastro na toponímia: uma via de acesso à memória indígena brasileira. Exame de Qualificação de Mestrado no Programa de Pós-Graduação em Memória Social. Banca: Regina Abreu e José R. Bessa (orientadores), Maria Amália Oliveira e Ana Paula da Silva. 21 de dezembro de 2022.