Em verdade, em verdade vos digo: é mais fácil um camelô passar pelo fundo de uma agulha do que um rico entrar no reino de Deus. (Mateus, 19,24).
O camelô Silvio Santos passou pelo fundo das Agulhas Negras na Academia Militar (AMAN), aos 18 anos, quando prestou o serviço militar obrigatório, mas acabou se alistando na Escola de Paraquedistas, no bairro Deodoro, zona oeste do Rio. Virou paraquedista – “exímio” – berrou a mídia. Depois, ficou riquíssimo.
O ex-camelô morreu bilionário no sábado (17) aos 93 anos. Foi enterrado discretamente no cemitério israelita como filho de imigrantes judeus sefarditas, cuja tradição religiosa – é claro – não contempla missa de sétimo dia, mas crê no paraíso como previsto no Terceiro Livro de Enoque. O SBT em nota publicada nas redes sociais anunciou:
“Hoje o céu está alegre com a chegada do nosso amado Sílvio Santos¨.
A grande mídia subiu o Corcovado com o Cristo Redentor iluminado, cuja “pele” tatuada com a roupa e o microfone do apresentador antecipava sua entrada no paraíso. De paraquedas. Usaram o Cristo vestido como Silvio de tantos Santos para canonizá-lo e santificá-lo. Não foi possível mandar um repórter como enviado especial ao céu, mas sua entrada lá foi antecipada aqui na terra. O diálogo do dono do SBT com Cristo foi gravado com exclusividade pelo repórter Pão Molhado do Takiprati, que viu quando a mídia entoou aos pés do Cristo o bordão:
- Sílvio Santos vem aí! Lá, lá, lá, lá, lá, lá.
- Nan, nan, nin, nan nan, camelô entra, rico não - respondeu o Cristo Redentor, repetindo sua frase de dois mil anos registrada por Mateus (19,24). Convidou Silvio a se desfazer de sua fortuna. Recorreu a outro evangelista, que conta o papo de Cristo com um jovem judeu podre de rico, alertando-o sobre o perigo das riquezas:
- Se queres ser perfeito, vai, vende tudo o que tens e dá-o aos pobres, assim terás um tesouro no céu. Depois, vem e segue-me. (Lucas 18:22).
Império bilionário
Mas o megaempresário Senor Abravanel, da mesma forma que o jovem rico do evangelho de Lucas, não se desfez de sua fortuna, não seguiu Cristo e “se retirou triste”. Triste? As emissoras de TV repetiram em coro que “sua gargalhada e suas mensagens de alegria ficarão para sempre na memória dos brasileiros”. Será? Ele tinha motivos para se alegrar, morreu com a bufunfa saindo pelo ladrão.
Mas agora ele não podia entrar no céu. O Cristo Redentor verificou documentos da Receita Federal e da Junta Comercial e viu que Silvio deixa patrimônio declarado de R$3,9 bilhões, o que foi confirmado pela Folhapress. São 35 empresas, entre elas o SBT com 114 emissoras em todo o Brasil, 6 mil funcionários e um público de mais de 100 milhões de pessoas, a Tele Sena, o Baú da Felicidade, o Jequiti, hotéis, empresas comerciais e mais de 3.000 imóveis.
- O talento de Silvio Santos, um dos maiores comunicadores do país, construiu um império bilionário – berrou unanimemente a mídia, que se superou em um bombardeio de silvismo durante uma semana com trégua apenas para os comerciais.
Nada foi dito sobre como sua fortuna foi construída. De qualquer forma, ele ativou a imaginação dos pobres e desvalidos desse Brasil varonil, como se possível fosse que qualquer pessoa humilde “com esforço e talento” se transformasse em bilionário, não é mesmo, Lombardi?
Bombardeio de elogios
E bota talento nisso! Que o digam a apresentadora Rachel Sheherazade, o diretor teatral José Celso Martinez e o ator Pedro Cardoso.
Sheherazade, que atuou à frente do SBT entre 2011 e 2020, levou um cano e travou com o dono da emissora uma batalha judicial reivindicando seus direitos trabalhistas. Não foi a única. Ela alegou “assédio, censura à liberdade de expressão e fraude”. Segundo a defesa, “sua contratação como Pessoa Jurídica visava fraudar a legislação trabalhista, fiscal e previdenciária”. Silvio debochou, mostrando qual jornalismo praticava, ao afirmar tê-la contratado “por sua beleza e voz apenas para ler notícias e não para dar sua opinião”.
A opinião do dono da SBT sobre a função do teatro é ilustrada também pela briga de mais de 40 anos que teve com o diretor José Celso Martinez. O megaempresário queria erguer um prédio com mais de 100 metros de altura – três torres – no terreno de sua propriedade ao lado do Teatro Oficina, o que representaria a morte da atividade teatral naquele espaço. Zé Celso tentou negociar e em um dos encontros, Silvio debochou, demonstrando seu “apreço pela arte”:
- “Meu secretário deu uma boa ideia, a gente coloca lá a ‘drogalândia’, como é que é, a cracolândia, e o drogado que mais se destacar no dia ganha um prêmio”.
Mais explícito foi o ator Pedro Cardoso que no Instagram se manifestou sobre as “atuações públicas degradantes de Silvio Santos e Delfim Netto”, este último também falecido recentemente com loas por todos os lados. Pedro Cardoso escreveu que “toda dor merece ser respeitada”, que o falecimento devia ser deixado “na intimidade da família” e que se sentia ofendido pelo enaltecimento público das “proezas desses dois empregados da ditadura militar”, que torturou e matou opositores e críticos. “Exasperado pela avalanche de elogios”, o ator falou por nós, colocando o dedo na ferida:
- “A verdade tem que ser dita. Silvio e Delfim enriqueceram porque serviram à ditadura militar e jamais por possuírem dotes intelectuais excepcionais. Talvez os tivessem, porém o que os fez ricos e poderosos não foram suas qualidades, mas os seus defeitos, suas fraquezas éticas. Ficar calado diante do elogio póstumo a eles, sem resistir, contribuiria para que os que possuem ambições ditatoriais hoje possam ser vistos também como pessoas benéficas para o Brasil. Silvio e Delfim nunca serviram ao bem do Brasil, mas ao seu próprio”.
Porta da esperança
Apesar de desmascarado, o dono do SBT insistia, no Corcovado, em pressionar o Cristo Redentor, repetindo seus bordões:
- Oiê. Tudo bem? Ô seu Cristo, vamos abrir as portas da esperança, deixa-me entrar.
Parecia arrependido:
- Quem quer dinheiro? Quem quer um aviãozinho? Jogo aqui ou jogo lá? É na frente? É no meio? Gritava o apresentador iluminado e vestindo o Cristo Redentor com sua roupa.
Mas o que ele oferecia eram apenas migalhas de uma fortuna acumulada graças à ditadura militar. Os políticos interferiram. O prefeito do Rio Eduardo Paes (PSD vixe, vixe) engrossou o coro dos contentes. Em campanha eleitoral para a reeleição, decretou luto oficial por três dias e prometeu erguer uma estátua do megaempresário em frente aos Arcos da Lapa para não deixar que o povo esqueça “o maior ícone da cultura brasileira”, responsável por alegrar os domingos da família brasileira.
Já o prefeito de São Paulo, Ricardo Nunes (vixe,vixe) também em busca da reeleição, dobrou a aposta: decretou luto oficial por sete dias e projetou imagens do dono do SBT no Edifício Matarazzo. Os prefeitos das duas cidades mais importantes do país não tiveram qualquer pudor ou vergonha em construir essa memória que tanto exasperou o ator Pedro Cardoso.
A gente sabe que a memória, campo de disputa política, é “uma costureira caprichosa, que faz a agulha correr para dentro e para fora, para cima e para baixo, para cá e para lá e não sabemos o que virá depois”, como escreveu Virgínia Woolf.
Da mesma forma que os bandeirantes, autores de massacres e escravização de indígenas são apresentados pelo Museu Paulista como heróis, Silvio Santos terá sua estátua nos Arcos da Lapa. Afinal, ele nos ajudou a “suportar as tardes dominicais, cruéis e incomensuráveis, que nos ferem para o resto da semana e para toda a eternidade” como ironizou, em outro contexto o escritor romeno Emil Cioran.