(Enviado de Cochabamba, Bolivia). Quem tem fé, acredita que Cristo morreu na cruz para nos salvar. E o Che Guevara? Morreu pra quê? Essa é a pergunta do visitante que chega a Vallegrande, depois de percorrer estradas poeirentas e miseráveis da chamada “rota do Che”. Lá, um pequeno museu mostra a foto do cadáver, sem camisa, descalço, barbas e cabelos compridos, com o rosto sereno e os olhos abertos. A comparação com o crucificado é inevitável.
Na foto, um oficial boliviano futuca com o dedo o buraco do coração ferido por uma bala, como se mostrasse a chaga aberta pela lança do centurião romano, sem desconfiar que a ressurreição aconteceria logo depois nas barricadas de maio de 1968, em Paris; na praça de Tlatelolco, no México; nas passeatas do Rio de Janeiro e São Paulo; nos protestos das ruas de Praga e no outono italiano de Turim. Em todas elas, os manifestantes gritavam o nome do Che.
Vallegrande, onde o Che foi enterrado, é apenas uma das estações da via sacra. Existem muitas outras que ele percorreu até chegar ao monte Calvário – o pequeno povoado de La Higuera, onde foi executado. Hoje, um pacote turístico alternativo, de discutível validade, permite visitar esses lugares em três dias, de ônibus, por estradas quase sempre não asfaltadas.
La Ruta del Che
Os caminhos da via crucis do Che estão precariamente sinalizados. Sobem serras, cortam vales escarpados, atravessam rios, passam por povoados quase desertos, cercados por vegetação rala, espinhosa e cerrada. Na estradinha de terra, a 18 km. de Lagunilla, uma placa artesanal de madeira indica com letras vermelhas: “Rutas del Che”. Um vândalo engraçadinho cometeu o sacrilégio de apagar o rabinho do “R”.
Os moradores de alguns desses lugarejos organizaram por conta própria, como puderam, pequenos museus, de forma artesanal, para atender a curiosidade do turista que chega em romaria. São também os próprios moradores locais que guiam os visitantes ao primeiro acampamento do Che, onde começou a guerrilha, até a escola rural de La Higueira, chegando finalmente em Vallegrande.
Perdida no Sudoeste boliviano, La Higuera deve ter o quê? Vinte, trinta casas? É por aí. Todas elas muito pobres. A sala da escolinha rural, onde o Che foi preso e depois assassinado, virou sítio de peregrinação, com alguns murais e objetos musealizados por um morador, por iniciativa própria. Lá está uma cadeira, com uma informação escrita num pedaço de cartolina: “donde se sentó por última vez”.
Na única praça, ao lado da escola, ergueram um busto bem simples do Che, com suas longas melenas e sua boina de guerrilheiro. Eu não vi, mas o jornalista Luis Crespo, colaborador da BBC na Bolivia, conta que os moradores de La Higuera acendem velas e rezam para o Che, pedindo milagres, que não aconteceram nesses últimos 39 anos. O Che virou santo, mas o lugarejo continua tão miserável como antes.
A única coisa que mudou foi a eventual chegada de raros turistas, o que permite a venda, aquí e ali, de algum artesanato e rende uns trocadinhos para os guias improvisados. Eles contam histórias e narram o que viram, como Policárpio Cortez, que dá seu testemunho na primeira pessoa: “Eu vi o Che, ferido no joelho, chegar montado numa mula, ali, pela boca da estrada”.
Tierra de su tumba
Vallegrande, localizada na beira da cordilheira dos Andes, é uma cidadezinha, com 18 mil habitantes, casas de barro e ruas sem calçamento. Ao contrário de La Higuera, tem alguns serviços básicos, embora precários, de hotelaria (três ou quatro hospedarias) restaurante, taxi e telefone público.
O circuito turístico alternativo inclui visita ao hospital que recebeu o cadáver do Che, trazido de La Higuerra amarrado num helicóptero. Ele estava com os cabelos sujos, a roupa rasgada e calçava umas “abarcas” bolivianas, de couro cru, parecidas com alpercatas-de-arigó. Lá, o corpo foi lavado pelas freiras e foi fotografado em imagens que circularam pelo mundo inteiro.
A peregrinação leva os visitantes também ao Memorial construido na improvisada pista de avião, no lugar onde o Che permaneceu enterrado em segredo durante 30 anos, até que foi identificado, tendo seus restos mortais sido trasladados para a cidade de Santa Clara, em Cuba. “Os cubanos cairam no choro quando encontraram os restos do Che”, diz o boliviano Villagomez, que ajudou a procurar a sepultura escondida.
No pequeno museu de Vallegrande, ao lado da foto famosa, tem um saco cheio de terra. Num pedaço de cartolina, seis palavras escritas à mão, com caligrafia irregular mas clara, informam: “Tierra de su tumba del Che”. A sintaxe desse espanhol aqui indica a origem popular e o bilingüismo andino de quem escreveu, além dos procedimentos artesanais na construção do museu, que exibe ainda o par de “abarcas” bolivianas.
Soldadito boliviano
Os moradores de Vallegrande acabam de participar, como atores de apoio, de um filme intitulado “Di buen dia a Papa”, do cineasta boliviano Fernando Vargas, que começa sua narrativa justamente com a foto do Che deitado na lavandaria do hospital, com os olhos abertos, um ligeiro sorriso nos lábios e uma ferida no coração. Essa é a foto que ficou mais conhecida internacionalmente.
O documentário sobre o Che em Vallegrande usou fotografias de três profissionais: Freddy Aborta, que vive hoje no Brasil e tirou as fotos durante a entrevista coletiva em que o cadáver foi exibido, René Cadima - o fotógrafo de Vallegrande, e Reginaldo Ustáriz - biógrafo do Che.
Segundo um cineasta de Santa Cruz, Rodrigo Bellot, o filme é um poema de amor a Vallegrande, com uma proposta estética e conceitual nova. Discute quem são os bolivianos, como são, a identidade fragmentada do país, sua história e o que se pretende fazer com ela. O documentário “fala de como nós amamos, brigamos, nos defendemos, damos, sonhamos, esperamos, sofremos e também perdoamos. Coincidentemente no momento em que nós, bolivianos, mais necessitamos, o filme nos devolve a fé em nós mesmos, em nossa capacidade de construir nosso destino coletivo”.
É uma pena que um filme como esse não passe no Brasil, que continua de costas para os acontecimentos e a produção cultural e artística dos países hispano-americanos. De qualquer forma, se anunciarem em algum cine clube, vai lá, leitor (a), que não te arrependerás. Num certo sentido, o filme dialoga com aquele poema do cubano Nicolás Guillén, que foi musicado e cantado pelo espanhol Paco Ibáñez:
“Soldadito de Bolivia,
soldadito boliviano,
armado vas con tu rifle,
que es un rifle americano,
te lo entregó un asesino,
soldadito boliviano,
regalo de mister Dólar,
para matar a tu hermano.
Pero aprenderás seguro,
soldadito boliviano,
que a un hermano no se vende,
que no se mata a un hermano,
soldadito de Bolivia,
soldadito boliviano”.
.P.S. - O CHE PODE ESTAR VIVO. Veja: http://www.taquiprati.com.br/cronica/205-o-che-pode-estar-vivo