Tem uma história deliciosa ocorrida com os Kadiweu. Lembra deles? Os Kadiweu, conhecidos como ‘índios cavaleiros’, são aqueles índios que aprenderam a montar cavalo que nem índios de filme americano, pendurados de lado, no dorso do animal. Hoje, eles são 1.500 indivíduos, vivem no município de Porto Murtinho (MS), numa terra indígena invadida por fazendas de gado, que desrespeitam o direito confirmado no século XIX, quando os Kadiweu derramaram muito sangue, lutando pelo Brasil na guerra do Paraguai. Muitos deles participaram das batalhas do Riachuelo e de Itororó, onde foram beber água e só encontraram a morte.
Em plena guerra, a esquadra brasileira entrou no rio Paraguai. Os fuzileiros navais acamparam na aldeia indígena, comandados por um almirante, vestido com farda de gala imaculadamente branca, cheia de adornos. As índias ficaram por ali, como quem não quer nada, só observando e estudando os uniformes, com olhos profissionais de artistas gráficas que são, criadoras de grande variedade de desenhos geométricos e ornamentais, pintados em cores fortes e vibrantes, com linhas retas, curvas, paralelas, espirais, em ziguezague e por ai vai. Os modelos são ensinados de mãe pra filha, mas são sempre enriquecidos com as novas experiências de sucessivas gerações.
Depois que o navio foi embora, as índias aplicaram seus novos conhecimentos e, num extraordinário trabalho de pintura corporal, ‘vestiram’ o cacique com a ‘farda’ de almirante. Elas reproduziram a farda em seus mínimos detalhes. O cacique, embora nuzinho, trajava o uniforme de gala pintado em seu corpo: jaqueta com ombreiras, dragonas de amarelo-buriti, punhos e botões de ouro, calça branca com listras douradas, presilha e galão de ouro, sapatos com fivelas, peito cheio de condecorações, medalhas, fitas...A pintura era tão perfeita, que qualquer capitão-de-mar-e-guerra bateria continência para aquele almirante nu.
Li essa história, que cito de memória, há algum tempo, não sei se no livro do Guido Boggiani, um pintor italiano que esteve na região do Pantanal na segunda metade do século XIX, e ficou fascinado com a arte indígena, ou se no livro de Darcy Ribeiro, que estudou a cultura Kadiweu. Lembrei dela, por causa do aniversário do novo Bairro Amarelo, que está comemorando onze anos de idade, celebrando a arte das mulheres Kadiweu.
O Bairro Amarelo
Localizado em Hellesdorf, no norte da ex-Berlim Oriental, o Bairro Amarelo é um grande conjunto habitacional, onde vivem 12 mil alemães. São apartamentos de um, dois e três quartos, construídos em blocos pré-moldados de concreto, que começaram a ser erguidos em 1985. Os moradores nunca esconderam sua insatisfação com o aspecto triste e depressivo dos pesados “caixotões” de cinco ou seis andares, que abrigam 3.200 apartamentos. Reivindicaram mudanças, quando se iniciou, em Berlim, após a derrubada do muro, uma das maiores reformas urbanas da Europa.
Foram atendidos. O Instituto de Política Urbanística de Berlim (IFS) resolveu remodelar tudo e dar uma nova cara ao bairro, numa obra orçada em US$ 58 milhões. Consultados, os moradores decidiram que esta nova identidade deveria ter a cara da América Latina. Por isso, mais de 50 escritórios de arquitetura latino-americanos apresentaram propostas para a remodelação dos espaços coletivos e das fachadas do conjunto. Ganhou o escritório de São Paulo - Brasil Arquitetura - cujo projeto previa, entre outras intervenções, usar desenhos indígenas nos azulejos das fachadas dos prédios.
Os arquitetos podiam muito bem aproveitar arte indígena do passado, já que existem milhares de obras-de-arte de índios do Brasil nos museus da Europa. No entanto, os moradores exigiam arte indígena contemporânea. Algumas dúvidas surgiram: os índios não teriam perdido suas fontes de inspiração? Seria possível encontrar desenhos novos, atuais, depois dos 500 anos de contato, do saqueio colonial, do trabalho compulsório, dos massacres, das missões, das invasões de terras, das estradas, dos colonos, dos garimpos, das frentes extrativistas, das hidrelétricas, dos grandes projetos? Afinal, em muitas sociedades indígenas, a cerâmica foi substituída por peças de alumínio e plástico e os índios deixaram de pintar.
Foi aí que os arquitetos encontraram as mulheres artistas Kadiwéu, descendentes das criadoras da ‘farda do almirante’. Foram informados pelos textos de Darcy Ribeiro, que a padronização dos modelos de pintura de corpo alcançou um grau tão alto de sofisticação, que os Kadiweu chegaram mesmo a desenvolver métodos de reprodução mecânica de alguns deles, através de uma espécie de carimbo, esculpido em relevo sobre madeira ou também em moldes de couro.
A Arte indígena
Um dos arquitetos conta como organizou a coleta de desenhos: “Mandamos para a aldeia Bodoquena um lote de papel cortado no tamanho já estabelecido, as instruções sobre as cores e canetas hidrográficas. Noventa e três índias, de 15 a 92 anos de idade, fizeram três desenhos cada uma. O resultado nos agradou muito. No produto final foram preservados os traços vazados das canetas hidrocor, o gesto da pintura”.
Num primeiro momento, selecionaram trezentas estampas coloridas, exclusivas, criadas pelas índias. Depois, seis delas, vencedoras do concurso, forneceram o modelo para 50.000 azulejos, usados nas fachadas dos blocos do Bairro Amarelo, que perdeu o seu ar triste, monótono e depressivo. De repente, com os desenhos Kadiweu nos azulejos, o bairro ficou alegre e colorido, humanizando-se, tornando-se mais belo, habitável e civilizado, o que facilitou a convivência e a comunicação entre os seus moradores. A aldeia Bodoquena ganhou, por este trabalho civilizatório, 20 mil marcos alemães, num reconhecimento, pela primeira vez na história, do direito autoral de uma nação indígena.
Mas esta não foi a primeira vez que se registrou o interesse atual por desenhos indígenas. Em 1994, a empresa H. Stern lançou uma coleção de joias com pedras preciosas – a coleção Purangaw - inspirada nos grafismos e nas formas de adornos usados por diferentes etnias. Pulseiras nas quais vários tipos de ouro foram entrançados manualmente reproduzem o trabalho das cestarias, com seus desenhos geométricos. As joias que imitam a cestaria dos índios Tukano foram feitas para complementar a coleção primavera/verão do estilista brasileiro Ocimar Versolato, em Paris. Também, a estilista Cecília Nussembaun recriou a arte plumária na rigidez do metal, transformando brincos com a forma de cocares e colares de penas em obras de arte miniaturizadas. Muitos exemplos como esses se reproduziram.
As seis artistas Kadiweu, autoras dos desenhos, ganharam passagens e estadias de duas semanas para comparecerem à festa de inauguração, em 1998, do novo Bairro Amarelo, e foram a Berlim levando – algumas delas – suas crianças de colo. Uma delas, Saturnina, conta a festa que deram os alemães, moradores do bairro, ao recebê-las. Aproveitaram a viagem para visitar o museu etnográfico de Berlim, que guarda coleções de cerâmica Kadiweu coletadas por Guido Boggiani no final do século XIX. Lá visualizaram alguns padrões decorativos dessa cerâmica antiga que depois foram por elas aplicados nas peças modernas.
A reforma urbana de um conjunto habitacional da Alemanha com desenhos Kadiweu evidencia os equívocos daquela concepção evolucionista ultrapassada que considera as experiências das sociedades indígenas no campo da arte e da ciência como primitivas, opostas à modernidade e, portanto, como algo que pertence à infância da humanidade, que não tem mais lugar no tempo presente.
O mundo inteiro reconhece a beleza produzida pelos índios. E o Amazonas? E o Brasil? Em qual bairro de cidade brasileira, seus moradores pediriam desenhos indígenas para as fachadas de suas casas e bateriam continência para o almirante Kadiweu?