- Tio, há muito tempo que eu queria um grande favor. Tinha vergonha de falar. Mas agora, que o senhor está de férias, em Manaus, criei coragem e vou pedir.
Eu já te apresentei a Damiana, leitor (a)? Acho que não. Pois foi ela quem, na semana passada, entrou na casa da minha mãe, onde eu me encontrava, com uma curiosa e patética solicitação sobre a qual falarei logo em seguida. Mas antes, deixa-me fazer as apresentações.
- Damiana, esses são os leitores da coluna Taquiprati. São poucos, mas são inteligentes, críticos e bem-humorados. De vez em quando, entre um gesto irado contra os ressarcimentos e as trapaças do Amazonino, escutam confidências familiares. Como hoje.
Agora vamos ao outro lado.
Leitores, esta aqui é a Damiana, mais conhecida como Dadá. Tem 57 anos, mora no Beco da Indústria, bairro de Aparecida. Mãe de três filhas, duas das quais são gêmeas – as ‘tijolinhos’. Dadá já é avó.
Duplamente minha parenta, a Dadá. Seu pai, Francisco Queiroz, era tio da dona Elisa, minha mãe, pelo lado materno. Sua mãe, Deolinda, era prima da mesma dona Elisa, pelo lado paterno, num daqueles casamentos intrafamiliares enrolados, típicos dos arigós que vieram para o Amazonas.
Sobrinha e ao mesmo tempo prima da minha mãe, a Dadá teve três irmãos. Duas delas estão vivas: Cleonice e Glória. O outro, o Cosme, irmão gêmeo da Damiana, morreu ao nascer, levando com ele a mãe, falecida após o parto. Damiana é uma sobrevivente.
Faz as tuas reflexões, leitor (a) e me diz: qual o grau de parentesco que tenho com a Dadá? Para complicar ainda mais, acrescento que compartilhamos uma irmã. Quer dizer, uma das irmãs da Dadá, a Glória, é também minha irmã. Entendeu? É. Eu sei. É complicado.
Os fios familiares tecidos dessa forma embolaram numa enorme confusão, num novelo enredado. Recorri ao clássico ensaio do etnólogo francês Lévi-Strauss sobre ‘Estrutura de Parentesco’ e usei os sofisticados modelos matemáticos que ele elaborou, mas até agora não sei explicar se a Dadá é minha tia, minha prima, ou sendo irmã da minha irmã, ela também é minha irmã.
Essas mesmas dúvidas povoam a mente da Dadá, que às vezes me chama de tio, quando quer proteção; às vezes de primo ou maninho, quando quer estabelecer cumplicidade. Mas sempre, respeitosamente, de senhor, apesar de onze anos mais velha do que eu.
Quando era eu criança, a Dadá me fazia dormir, embalando a rede e cantando. Me dava banho. Colocava talco nas brotoejas e me levava a passear na Praça da Saudade. Na família, todo mundo sabe que a Dadá foi a babá do Babá.
Bom terminadas as apresentações, vamos pra frente que atrás vem gente. Vamos aos fatos. Onde é mesmo que eu estava? Ah, a Dadá entrou em casa pedindo um grande favor.
Diante das circunstâncias, tu, leitor (a), te negarias a atender qualquer solicitação da Damiana? Nunquinha. Eu também não, mesmo sem conhecer que grande favor era aquele. E qual era ele? A Dadá explicou com lucidez:
- Tio Babá. Eu não sei ler nem escrever. Não consigo nem falar direito as coisas que estão aqui dentro de mim (ela aponta para o coração). Mas eu queria tanto botar pra fora tudo isso. Tio, tu que tem o dom da palavra, bota no papel aquilo que estou sentido. Bota!
Os otários podem duvidar da inteligência da Dadá, só porque ela não lê e não escreve, ou porque, quando fala, suprime vogais iniciais de algumas palavras e troca algumas sílabas de lugar. Ela mesma alimenta, espertamente, essa visão equivocada, quando com bom humor diz:
- Nasceram dois gêmeos. Cosme e Damiana. Um morreu. Não sei qual foi, se meu irmão ou eu. Mas se foi ele, levou toda a ´tiligência´.
Sabida essa Dadá! Constrói seu raciocínio saltitando aqui e ali, como um passarinho, enganando o interlocutor desavisado. Com extraordinária capacidade de observação, faz a sua própria leitura do mundo e das pessoas. Deixa os otários pensaram que inteligência diferente é falta de inteligência. Quando o otário baixa a guarda, ela – nhoc! – dá o bote e bota o malandro no bolso. Dessa forma, ela localizou no cemitério de São Raimundo o carro roubado do genro, deixando a própria polícia de queixo caído.
Pois agora estava ela, a Damiana, diante de mim, pedindo-me que comunicasse a ti, leitor (a), os sentimentos embolados em seu coração. E ainda explora habilmente a minha vaidade, com essa história de “dom da palavra”.
- Olha, Dadá, isso é muito delicado, essa coisa de interpretar os sentimentos dos outros.
- Ah, tio, ‘terpreta’ sim. Olha, tu escreve que quando meu marido me abandonou com três filhas pequenas – as duas gêmeas na ‘ cubadora’ – o Brígido e a Glória me ‘colheram’, me botaram dentro da casa deles, deram comida, carinho e educação pra mim e pras minhas três filhas.
Comecei a fazer anotações e a provocar com perguntas.
- E daí, Dadá?
- Aí, tio, tu sabe. Escreve a verdade. Diz que a Glória e o Brigido, que eram pobres, dividiram a comida dos 16 filhos. Que os meus sobrinhos sempre trataram minhas filhas como irmãs. Que sempre fizeram sentir que a casa deles era a minha casa. Que a Glória foi minha mãe e mãe das minhas filhas. Que o Brígido foi o pai.
Mas isso são fatos, Dadá. O que é mesmo que tu estás sentindo?
- Eu não sei. Tou com um negócio aqui dentro de mim, sabe, se mexendo e não consegue sair.Eu queria ‘tribuir’ tudo isso, mas não tenho nada pra dar. Nem palavras. Queria dizer pra Glória e pros meus sobrinhos, que eles foram – e são – tudo na vida pra mim.
O coração da Damiana está espocando de amor e gratidão, ela quer gritar isso para o mundo. Compreendeu a grandeza do gesto silencioso de solidariedade, que é o que nos faz humanos. Seus olhinhos brilham. Ela vive um momento todo especial. Um sentimento forte, muito intenso, foi se acumulando dia após dia, semana após semana, ano após ano, agora quer rasgar o peito - insuficiente para contê-lo - e saltar pra fora. Quer retribuir a generosidade da irmã e derramar toda sua ternura, mas não sabe como.
- Dadá, tu tens vontade de sair gritando por ai que se não fosse a Glória, a Damiana teria ido embora com o Cosme?
- É isso aí, tio. Terpretou. Terpretou bem.
- Não chora, Dadá, que eu sou molenga. Me derreto todo com uma cena mais dramática da Linda Inês com o Flamel da ‘Fera Ferida’. Imagina com um negócio desses, de verdade!
Dadá enxugou os olhos.
- É que tou mocionada, tio. Muito mocionada.
- Então compra o jornal amanhã e dá pra Glória ler.
- Ah, tem que pagar? Pra sair no jornal tem que pagar, tio?
- Não, Dadá. Tem que comprar o jornal na banca sim. Mas o espaço não é alugado, nem é vendido. É independente, como a Mocidade de Aparecida.
- Ah, então, tio, eu quero aproveitar pra tribuir também a todo mundo que me ajudou: a Ângela da LBA, a irmã Maria da Casa da Criança, a tua mãe, tia Elisa, o pessoal da Eletronorte que dava carona pra minhas filhas irem a escola...
Ah, Dadá! A Eletronorte fica pra outra vez. Agora, o meu espaço já terminou.