O escritor irlandês Oscar Wilde escreveu e publicou uma crítica literária impiedosa de um livro que, como depois confessou, ele não leu. Questionado sobre a legitimidade de tal julgamento, ironizou:
- Nunca leio os livros que critico, para não me deixar influenciar pelo seu autor.
Não segui o seu conselho. Li de cabo a rabo o “Dicionário de Turismo”, de Robério Braga, sempiterno Secretário de Estado da Cultura, Turismo e Desporto do Amazonas. Dessa forma, peço desculpas ao leitor se perdi a objetividade e me deixei fascinar pelas pérolas que lá encontrei.
Os comentários que vou fazer aqui estão, portanto, contaminados por esse fascínio. Quem me vendeu o peixe foi Elson Farias, um poeta dos bons, que escreveu a orelha do dicionário e nos garante que ele pode ser útil aos turistas, agências de viagem e profissionais do setor: “Tenho certeza de que este é um livro escrito para servir” concluiu o poeta, autor de vários livros de poesia que tanto nos encantam: Barro Verde (1961), Estações da Várzea (1963), Ciclo das Águas (1966). Por admirar Elson Farias, acreditei. Comprei um exemplar.
O livro editado em São Paulo foi impresso em Erechim (RS), financiado pela Fundação Lourenço Braga, de Manaus que, por acaso, pertence à família do autor. Para testá-lo, imaginei como poderia ser usado por um turista gaúcho que quer conhecer a Amazônia e que pegou lá na gráfica de sua cidade um exemplar dessa obra-prima de Robério Braga – o Berinho.
A primeira indecisão do Gauchão é na compra das passagens. Consulta, então, o dicionário do Berinho e lá, na letra “B” (pg. 46) encontra duas definições geniais, que vou colocar entre aspas para não pensarem que estou plagiando criação alheia.
“Bilhete de Ida – Aquele que cobre apenas uma direção”.
“Bilhete de ida-e-volta – aquele que cobre a viagem de ida-e-volta”.
O Gauchão vacila, não crê no que seus olhos leem: “Será que entendi bem?”. Tira a dúvida com outro verbete na letra “I”, onde Berinho insiste:
“Ida-e-volta – viagem em que o passageiro retorna, pelo mesmo itinerário, ao ponto de partida” (p.144).
O Gauchão fica confuso, porque deseja voltar de Manaus a Porto Alegre por outra rota, via Alto Solimões, onde pretende ver as obras fantasmas do governador Dudu Braga. Mas, nesse caso, a viagem é de ida-e-volta ou só de ida? Na letra “V”, Berinho, que está obcecado com idas e voltas, liquida de vez o assunto:
“Viagem – Deslocamento de uma pessoa para localidade diversa de sua residência. Viagem de ida-e-volta, que pode ser realizada: a) de um ponto a outro com a volta pela mesma rota; b) com a volta por uma rota diferente” (p.235).
Barbaridade, tchê! O Gauchão, que podia muito bem se confundir, achando que o bilhete de ida-e-volta podia ser só de ida, fica devidamente esclarecido com a sacação do Berinho. Suspira aliviado, mas logo enfrenta outro problema: “como é que transporto minhas roupas?” – ele se pergunta, angustiado. Corre ao dicionário e lá encontra a resposta:
“Mala – Do francês Malle. Caixa de madeira, lona, plástico ou fibra, usada para transporte de roupa e utensílios de viagem” (p.186). (Nada é dito sobre “mala sem alça”, talvez porque o autor não gosta de aparecer e evita personalizar com dados autobiográficos).
Com as malas arrumadas, Gauchão quer saber para onde deve ir com sua bagagem. Graças a Deus, Berinho, com aquela lucidez que lhe é peculiar, previu tudo e dá a dica:
“Aeroporto – Local ou aeródromo que possui instalações e serviços públicos permanentes para o funcionamento regular do tráfego aéreo, com embarque e desembarque de passageiros e de carga. Local constituído de uma ou mais pistas de aterragem” (p.14).
Consciente de seu destino, louco para “aterrar” logo em Manaus, Gauchão ruma ao aeroporto, onde enfrenta novo dilema: “Como carrego minha mala?”. Ah, seus problemas acabaram! Berinho é gerente das Organizações Tabajara. O gaúcho conferiu na letra “C”:
“Carrinho de bagagem – Pequeno carro, de arame de aço inoxidável, destinado ao transporte, pelo passageiro, de bagagem pessoal nos aeroportos e estações ferroviárias” (pg.62).
Quem diria, hein? A genialidade dessa obra-prima da lexicografia amazonense está no detalhe: não é qualquer arame, é de aço, não é qualquer aço, é inoxidável. Graças às dicas do Berinho, Gauchão, empurrando seu carrinho, se pergunta o que vai fazer no fim de semana. Busca ajuda e encontra a seguinte joia na letra “F”:
“Fim de semana – período semanal que abrange normalmente o sábado e o domingo, e que possui, em turismo, expressão especial pela possibilidade que oferece para viagens de curta duração a tarifas reduzidas” (pg.118).
Gauchão capta a profundidade da coisa. O fim de semana do Berinho é, normalmente, sábado e domingo. NORMALMENTE! Quem acha a definição esdrúxula é porque desconhece que o fim de semana no Congresso Nacional abrange também segunda e terça-feira e, na Bahia, todos os dias da semana.
Gauchão decide, então, passar um fim de semana normal em Itacoatiara. Aluga um carro. Quer encher o tanque. Abre o “Berinho”, buscando a solução. Encontra:
“Bomba de gasolina – metonímia usada para denominar um conjunto de instalações destinadas a prover veículos motorizados de combustível, lubrificantes e afins (ing) – Gas station”.(pg. 48).
O turista gaúcho pergunta a um taxista amazonense se tem alguma metonímia por perto. O cara respondeu: - “Fudereteu! Eu pensava que sabia o que era uma bomba de gasolina, mas agora deixei de saber”. Aqui faço uma crítica construtiva, é claro: se a próxima edição for ilustrada, com foto de um posto, o dicionário será mais útil ainda.
Finalmente, nosso Gauchão, que está com uma caganeira de um tacacá mal digerido, encontra um posto. Procura desesperadamente o verbete WC ou banheiro, mas o dicionário não registra nenhum dos dois. Coitado, para se aliviar, ele corre pra trás de uma moita num terreno baldio e obra. Depois, no sufoco, usa as páginas arrancadas da obra do Berinho, comprovando uma vez mais sua utilidade.
As más línguas dizem que o conteúdo do livro é “para encher linguiça”. Berinho abre, por exemplo, na letra V o verbete “Vozes de Animais”, nos ensinando que “a abelha zumbra, a andorinha gazea, o camelo blatera, a onça esturra, o peru gruguleja e o burro azurra”, etc.etc (pg. 246). Em que isso pode servir ao turista? Confesso minha ignorância. Talvez o poeta Elson Farias, que avalizou a obra, possa nos dizer numa próxima edição, aumentando a orelha do livro, como uma homenagem ao azurrante autor.
Diante desse monumento lexicográfico, não faltarão invejosos para dizer que o dicionário do Berinho, com suas ululantes obviedades, representa a derrota do pensamento no Amazonas. Ledo engano! O autor da obra é presidente da Academia Amazonense de Letras e já presidiu o Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas (IGHA), além de contar com o aval absolutamente desinteressado de um poeta de renome. Além disso, é coerente na sua adesão ao poder, adotando a máxima: “Hay gobierno? Soy a favor”.
Com fidelidade canina, Berinho serviu a todos os governos na ditadura militar. Foi filiado à Arena, ao PFL, ao DEM, ao PTB, pertence agora à base aliada, e se o PSOL tomar o poder, ele pedirá sua carteirinha do partido. Com esse livro, a Secretaria de Cultura (Berinho) fez um baita investimento cultural, repassando recursos para a Fundação Lourenço Braga (Berinho). Mas valeu a pena. O turista tem, assim, uma tomografia da intelligentzia local oficial. Afinal, seu autor foi presidente da Academia Amazonense de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico do Amazonas.
O que seria do turista sem esse dicionário? Não saberia sequer distinguir um bilhete de ida de outro de ida-e-volta. O preço do livro é salgado - 42 reais – mas compensa. É verdade que sua compra causou um rombo nas minhas combalidas finanças. Já que o adquiri não para usufruto pessoal, mas por razões profissionais, estou pedindo ressarcimento ao Cirilo e ao Batará, donos do Diário do Amazonas. É possível que alguns leitores dessa desinteressada resenha queiram comprar o dicionário, assim solicito ao Berinho uma comissão de dez por cento pela propaganda desinteressada. É razoável.
P.S. 1 - O Dicionário omite na letra Z o verbete "ZECA, de Zeca Nascimento, que nesse sábado completou 55 anos de idade, abençoado por todos os orixás, por Santa Edwiges – virgem e mártir - e por Santa Chachá, nem uma coisa, nem outra, padroeira dos glutões, dos amantes da vida e dos que cultivam a amizade. Os parabéns da coluna a ele que doou 15 mil metros quadrados a dezenas de família da Comunidade Santa Edwiges em Manaus.
P.S.2 - Comprei o dicionário durante o lançamento de um livro de Thiago de Mello numa livraria em um shopping de Manaus. Lá estavam muitos amigos prestigiando o evento. Folheei as páginas e comecei a ler em voz alta o que ia encontrando. As pessoas ouviam e achavam que eu estava inventando. Por isso, mostrava os verbetes para quem quisesse ver. Um dos amigos: - "Bessa, você é muito corrosivo". Pois é, né, como gostaria de espalhar minha ternura, mas nessa terra de muro baixo, alguém tem de ser corrosivo, não tem não? Do contrário, pensarão que somos todos uns idiotas. E não somos. Somos?
Referência: Robério Braga. Dicionário de Turismo. Fundação Lourenço Braga. Uniletras Editora. São Paulo. 2003. 255 pgs.