No início da década de 1960, no Colégio Estadual do Amazonas, todos nós, alunos, queríamos ter a sabedoria do Manoel Octávio, o domínio de palco do Manoel Octávio, a fluência verbal e a elegância do Manoel Octávio. Enfim, todos nós queríamos SER Manoel Octávio, aceitando até mesmo, de contrapeso, sua careca brilhante, que lhe custou o apelido de ‘Jacaré’, por ele repudiado. Mas já não se faz mais Manoel Octávio com ‘c’ como antigamente: erudicto, seductor, retórico.
Manoel Octávio Rodrigues de Souza era o nosso professor de História. Traçava tudo: pré-história, idade antiga, medieval, moderna, pós-moderna, contemporânea, o que pintasse. Discorria sobre Egito, Roma e Grécia como se tivesse sido testemunha presencial dos fatos. Quem assistiu suas aulas jamais esquecerá a narração da cena na qual o imperador Julio César recebe de presente da rainha do Egito um enorme tapete e ao desenrolá-lo – oh, surpresa! - encontra lá dentro, nuazinha, a própria Cleópatra, que se tornou sua amante. Foi a primeira vez que ouvi a palavra ‘calipígio’, que ele pronunciava com um estranho brilho nos olhos.
Gostava de usar palavras que nos obrigavam a ir ao dicionário. Sua narração, rica em detalhes, era mais apimentada do que o croquete da dona Alvina, em cuja banca de tacacá rolavam as fofocas mais maliciosas do bairro de Aparecida, incluindo nomes de quem encroquetou quem. Ele nos revelou que quem despiu e embrulhou a rainha do Egito no tapete – aqui pra nós, não é pra espalhar não - foi Apolodoro, o criado dela, um negão siciliano com quem teve um caso, dizem as más línguas.
Pois bem, o caso foi censurado no filme ‘Cleópatra’, que entrou em cartaz no cinema Politeama de Manaus, em1964, estrelado por Elizabeth Taylor, Rex Harrison e Richard Burton. Um cara tão importante como Apolodoro, que despiu Cleópatra e a banhava com leite de cabra, massageando-lhe o corpo, é discriminado no filme, onde não passa de um zeguedegue qualquer, de um figurante secundário protagonizado por um ator obscuro, um tal de Cesare Danova.
Essa é a prova de que as aulas de Manoel Octávio estavam mais up to date do que os filmes holywoodianos da Memérica. Não tinha censura em relação às sacanagens. Manoel Octávio nos ensinou que a História tem que ser como dona Alvina, a tacacazeira: precisa, objetiva, bem informada, crítica e contestadora. Se puder, também fofoqueira, que ninguém é de ferro.
Quando havia fofoca, ela emergia nas aulas de Manoel Octávio, que saía do Egito antigo para a Europa medieval e não hesitava em nos falar do ‘direito de pernada’. Pulava os fossos dos castelos feudais com a maior familiaridade, como se estivesse entrando no ‘La Hoje’, na ‘Pausada’, ou em qualquer centro noturno de lazer de Manaus. Nem o Islam, que admirava, escapava de suas atentas observações, está aí a jovem Aicha que não me deixa mentir.
A jovem Aicha
A aula sobre Aicha atraía gente de outras turmas. Aula, hoje, virou esculhambação com um entra e sai constante de alunos, celular tocando, gente conversando. Mas naquela época era algo tão sagrado quanto uma missa, tinha seu ritual, sua liturgia. Era teatro puro, com cenário, figurino, movimento cênico, iluminação e plateia silenciosa e atenta.
Manoel Octávio vestia sempre um terno de linho bem engomado – cada dia uma cor diferente. Entrava em sala de aula e saudava, religiosamente, com sua voz anasalada: “Bom dia, jovens!”. Fazia-se um silêncio respeitoso. Ele, então, tirava do bolso a carteira de Holywood sem filtro, pegava um cigarro e com ele dava uns tapinhas sobre a carteira, antes de acendê-lo com um isqueiro de chama escandalosa.
Fazia a chamada, expelindo fumaça pela boca, em pequenos rolos. Tragava e enquanto falava a fumaça ia saindo. Sua aula sobre o Islamismo deixava a todos nós fascinados com Maomé, casado quinze vezes, quase sempre com mulheres mais velhas, como a viúva Kadidja. O profeta, porém, exagerou com a única esposa mais nova. Quando noivaram, ela tinha seis anos de idade, casando-se aos catorze. Naquela época não tinha esse negócio de pedofilia não, tema sobre o qual não convém tocar em época de eleição no Amazonas.
De qualquer forma, decorei, palavra por palavra, a narrativa de Manoel Octávio com sua voz fanhosa e empostada, intercalada por baforadas de fumaça: “E Maomé deixou a infância alegre entre os beduínos, onde pastoreava os carneiros da família, deixou os camelos da viúva Kadidja, já morta, e apaixonou-se por Aicha, es-plen-do-ro-sa-men-te bela (aqui dava uma paradinha) na explosão dos seus 14 anos”. Acelerava as últimas palavras, como se quisesse aumentar a explosão.
No momento em que ele exaltava a beleza da jovem Aicha, com imagens fortes, ouvia-se um murmúrio crescente e uníssono se levantando na sala de aula, como no Maracanã, quando a torcida espera um gol, e a bola sai tirando tinta do travessão. Talvez, alguém da turma pensasse na beduína mais próxima, Charufe Nasser, a sultana do seringal, que morava na Ferreira Pena com Monsenhor Coutinho e era, com todo respeito, um piteuzinho. Mas o xodó de Manoel Octávio era mesmo o Império Gupta.
O Império Gupta
Andei perguntando aqui e ali, dentro da própria universidade, e encontrei poucas pessoas que sabem, atualmente, o que foi o Império Gupta, a maior potência política e militar que floresceu no norte da Índia, se estendendo pelo vale do rio Ganges, durante três séculos. A novela da Globo – Caminho das Índias – com tanta dancinha, are baba, namasté, ignorou olimpicamente o Império Gupta. Mas o Manoel Octávio não. Ele adorava o Império Gupta, a quem dedicava várias aulas.
Não vou contar aqui o que imperador Samudragupta aprontou com uma cortesã chamada Ajita Gosaliputra porque nem a banca de tacacá da Dona Alvina aguentaria. Talvez algum aluno tenha guardado o caderno de pontos das aulas de História do Manoel Octávio - hoje nome de uma creche municipal em Manaus - e possa disponibilizá-lo na internet. Aqui, prefiro lembrar o que nosso mestre nos ensinava: que nunca na história da Índia, houve tanto progresso como no Império Gupta. No entanto, esse fato não era reconhecido pelo filósofo invejoso e imoral, chamado Purana Kassapa (também, com esse nome!).
Eis o que eu queria dizer nesse espaço que está terminando. O jornal O Globo está igualzinho ao Purana Kassapa. A manchete de ontem, sábado, berra em letras garrafais uma não-notícia: “GOVERNO LULA NÃO MUDOU A CALAMIDADE NO SANEAMENTO”. Outros registros vão na mesma direção: “PT e aliados da AL pregam controle da mídia”. “Mais crianças catam lixo”. Tudo isso na primeira página. Lá dentro: “Doze milhões de casas sem água”; “É vergonhoso e atenta contra a saúde”; “País tem cerca de um milhão de dependentes de crack”. E para fechar: “Serra defende Zona Franca de Manaus”.
As notícias são todas editorializadas, responsabilizando Lula por tudo de ruim que existe no país. Tudo bem, o papel da imprensa é esse mesmo: criticar, dar pau no poder, mas não de forma seletiva. Isso me cheira a manipulação. Nesse espaço aqui, criticamos sem ambiguidades as alianças do Lula com Sarney e Roseana, com Collor, Jader Barbalho, Michel Temer... Mas esse tipo de crítica O GLOBO não faz, porque aí teria de contar a história ao estilo do Manoel Octávio, revelando os podres de todos os lados. Suspeito que quem escreve os editoriais de O Globo é o próprio Purana Kassapa.
P.S. – Esse texto é uma homenagem póstuma a Maria Eulália Martins, professora aposentadora do Curso de Serviço Social da UFAM, que nos deixou e com quem compartilhei, com cumplicidade, a admiração por Manoel Octávio, um dos nossos melhores professores, aqui apresentado da forma que Eulália gostava: brincando, com humor.