“A política é a melhor alternativa que a humanidade encontrou para substituir o maior prazer que um ser humano pode ter: bater até à morte para depois comer o fígado do outro, abocanhando-o com a carne ainda quente e o sangue ainda fresco. Quem não está disposto a reconhecer isso, não consegue superar a própria vontade de devorar o outro. Por isso, se num debate político te chamo de criminoso e te xingo, fica contente, isso ainda é melhor do que você ser servido à minha mesa”.
Quem diz isso é meu amigo Henrique Sobreira, professor da UERJ, crítico, irônico, debochado, passional, lúcido, gozador e, sobretudo, fazedor de frases. Para relativizar a oposição entre civilização e barbárie, Henrique lembra que os maiores atos de violência humana sempre foram cometidos por pessoas que se autoproclamaram civilizadas e consideram que “o outro” era alguém que devia ser “educado”. Isso pode ser comprovado nos últimos cinco séculos: de Isabel - a Católica e Dom Manoel - o Venturoso, até os Georges Bushinho e Bushão. Os índios e os mulçumanos que o digam.
No Brasil, pelo menos nas campanhas eleitorais, a política substituiu a antropofagia. Salvo o bispo de sugestivo nome Sardinha, ninguém foi jantado e devorado pelo adversário, ainda que pequenas violências realizadas dentro de certos limites e hipócrita ou sinceramente condenáveis, tenham sido cometidas ao longo da história, como mostram exemplos mais recentes.
Cantando “espada de ouro quem tem é o marechal”, eleitores do marechal Lott cuspiram na cara de Jânio Quadros; o general Figueiredo chamou os estudantes de Florianópolis pra porrada; jogaram ovo e apedrejaram o Mário Covas; atiraram uma galinha preta na Marta Suplicy; esbofetearam o Collor em Niterói; lançaram uma torta na cara do Berzoini, então presidente do PT. Um velhinho deu umas bordoadas no Zé Dirceu. Vaiaram o presidente Lula na abertura do PAN. Esses gestos de violência não deixaram sequelas físicas ou morais.
O José e o Serra
Um dia, caminhando pelo calçadão de Icaraí, em Niterói, encontrei um amigo, também professor da Uerj, Ronaldo Coutinho, um doce radical, que se arrastava, todo esparadrapado, exibindo hematomas pelo corpo. Dias antes, ele havia dado um soco no Collor e os seguranças moeram-lhe o corpo de porrada. Apesar de dolorido, estava feliz, feliz da vida: “estou quebrado, mas acertei o pústula” – dizia, rindo, como um menino travesso. Confesso que fiquei na fronteira da política e do canibalismo, quando invejei a façanha do Coutinho. Ele fez o que eu e a metade do povo brasileiro queríamos fazer. Estou orgulhoso de ser seu amigo.
E isso porque a bofetada no Collor foi mais simbólica do que física, se situou entre a sapatada no Bushinho e a estatueta de metal lançada contra o Berlusconi na Itália. Agora acertaram José Serra com uma bolinha de papel, que assumiu várias formas: “fita adesiva”, “artefato”, “tampa de garrafão de água mineral”, “objeto contundente”, “projétil”, até chegar a uma “bobina de papel crepe que arremessada com força pode provocar danos graves na pessoa atingida” segundo o bobinólogo Merval Pereira, articulista do jornal O GLOBO, preocupadissimo com a saúde de seu candidato. E é aqui que o fiofó da cotia assovia, ou como poderia dizer Orozimbo Nonato: Hic culum cotiae sibilare.
A cotia assovia quando digo que admiro o José Serra. Sinceramente. Sem ironia. Juro. Faço um juramento amazônico: quero ver minha mãe mortinha no inferno, quero que Santa Luzia me cegue se estou mentindo. Mas o Serra que eu admiro é o de carne e osso, que nasceu pobre, filho de um feirante, ex-presidente da UNE, que amargou o exílio, lutou pela redemocratização do país, foi deputado, senador, prefeito, governador, ministro da saúde – bom ministro. Aquele que no início da campanha reconhecia os acertos do governo Lula. Nesse até que dava pra votar. Mas ele não é candidato.
O candidato é o outro Serra (PSDB vixe vixe), aquele conivente com a mídia conservadora - que o inventou - comprometido com interesses dos setores mais atrasados e obscurantistas do país, arrogante, gigolô do sagrado e da religião, dono da verdade. Aquele cuja mulher declara que a adversária é a favor de matar criancinhas, que quando questionado sobre isso posa de vítima e baixa o nível do debate, que usa o tema do aborto no palanque eleitoral ocultando que ela também já fez, que se deixa liderar pelo seu vice Indio da Costa – um paspalhão – em política externa e de segurança. E ai Serra perdeu: na emblemática escolha do vice.
A credibilidade
Nesse outro Serra, metamorfoseado em Opus Dei, que espetaculariza sua fé na Virgem de Aparecida, eu não voto, embora o respeite, porque ele é o candidato de mais de 40 milhões de brasileiros, alguns deles amigos muito próximos, com quem mantenho fortes laços afetivos, mesmo se nesse momento um de nós vai pra lá e o outro vem pra cá. No Serra que não voto é no Serra da Rede Globo, que arma, desinforma, sataniza, que zomba da minha inteligência, que acha que o cidadão é um otário, que esqueceu os gritos do povo nos comícios das Diretas Já: “O povo não é bobo, abaixo a TV Globo”.
Nessa semana, os telejornais da Rede Record e do SBT mostraram que Serra foi atingido por uma bolinha de papel atirada por um grupo de mata-mosquito que ele demitiu quando ministro da Saúde. O Jornal Nacional dedicou sete longos e caríssimos minutos para “provar” que a bolinha de papel era só parte da história, tinha havido outra agressão. Apresentou imagens nebulosas, interpretadas por um perito de reputação duvidosa, que diz que está vendo aquilo que não estou vendo, embora olhemos as mesmas imagens. O atentado, então, justificaria que Serra procurasse o médico, ex-secretário de saúde do Cesar Maia, para fazer uma tomografia computadorizada.
Francamente. Por serdes vós quem sois! Não exagereis para não serdes exagerado. Imaginem vocês se depois da cuspida que levou na cara, o histriônico Jânio Quadros exigisse um exame de abreugrafia, desconfiado de que o eleitor de Lott era certamente um tuberculoso que numa guerra química queria contaminá-lo. Serra é o primeiro paciente no planeta que faz tomografia por causa de um arremesso de uma fita crepe. Num país gozador como o Brasil, ele passou a ser objeto de piada, quando merecia contar com nossa solidariedade, se o fato não fosse manipulado e hiperdimensionado.
O episódio de violência, mais que nada simbólica, tem que ser condenado de qualquer forma, com veemência, com a mesma veemência com a qual devemos rejeitar sua exploração política, da forma mais torpe e manipuladora de factoides. Apesar disso, é preciso discordar também da intervenção do Lula que, como presidente da República, representa todos os brasileiros e não podia bater boca com um candidato. Não cabia a ele esse papel.
Numa época em que não havia escrita, no século VI antes de Cristo, na Grécia, um ex-escravo, chamado Esopo, que tinha o dom de narrar, contava entre outras a história de Pedro e o Lobo. Pedro, pastor de ovelhas, todo dia enganava a população gritando: “Olha o lobo!”. No dia em que o lobo apareceu, efetivamente, ninguém acreditou nos seus gritos. Quem acredita num mentiroso contumaz? Lembrei-me dessa história vendo o Jornal Nacional e a primeira página de O Globo, nessa sexta-feira. Assim, quando no domingo, 24 de outubro, o Globo escrever que é domingo, 24 de outubro, duvide, procure outras fontes antes de vestir sua roupa dominical.
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P.S. – Às vezes, autoritário. Às vezes, ranzinza e ligeiramente rabugento. Sempre, amigo dos índios Guarani. Armando Barros, professor da UFF, parceiro em tantos projetos, nos deixou nesse sábado, com muita saudade. Seus alunos, seus colegas e os guarani choram a perda.