Inauguração do marco do rio Roosevelt, antigo rio da Dúvida. Da esquerda para a direita, George Cherrie, naturalista americano, Ten. Lyra, Cap. Médico Dr. Cajazeira, Roosevelt, Rondon e o engenheiro Kermit, filho de Roosevelt | João Salustiano Lyra/ Museu do Índio/Funai
P.S. - A foto-montagem é criação do Fernando Campos, da Agência Assaz Atroz
A aventura do marechal Rondon com um ex-presidente dos EUA
Folha de São Paulo – Ilustrissima, 28/04/2019
Jornalista Larry Rohter assina biografia do militar e sertanista brasileiro
RESUMO] Trecho inédito de biografia do marechal Rondon (1865-1958) que sai em maio narra a morte de um ajudante da expedição liderada pelo militar e sertanista brasileiro e pelo ex-presidente dos EUA para mapear o rio da Dúvida, atual rio Roosevelt, na Amazônia.
O trecho a seguir está no capítulo 14 (“Canoa, canoa”) de “Rondon - Uma Biografia”, livro de Larry Rohter que a Companhia das Letras lança no início de maio. O episódio narra a morte do barqueiro Simplício na Expedição Roosevelt-Rondon, empreendida por Theodore Roosevelt, então ex-presidente dos EUA, e pelo militar e sertanista brasileiro de novembro de 1913 até maio de 1914.
Trabalhando em turnos sob a supervisão insistente de Rondon, os homens conseguiram em apenas quatro dias transformar o tronco da tatajuba, ainda com o córtex, em uma canoa utilizável. Para Roosevelt foi uma proeza e tanto, ainda mais admirável porque o trabalho continuou mesmo no breu absoluto da noite tropical, à luz bruxuleante de velas, às vezes até após as dez da noite.
“A intermitência da luz revelava a floresta tropical assomando nas trevas ao redor”, escreveu. “O ar noturno era quente, imóvel e pesado de umidade. Os homens permaneciam nus da cintura para cima. As peles morenas, acobreadas, cor de ébano brilhavam como que besuntadas e tremiam com o esforço incessante dos músculos.”
Na manhã de 14 de março, a nova canoa foi finalizada e os exploradores puderam retomar a jornada. Em meio a chuvas pesadas, foi preciso 22 deles para arrastar a embarcação recém-entalhada pelo barranco lamacento até o rio. Finalmente por volta do meio-dia estavam de volta à água e a caminho. Quase imediatamente, porém, se depararam outra vez com perigosas corredeiras, uma série de seis no total.
Impacientes para seguir em frente e preocupados com os mantimentos, decidiram não retornar à terra firme e tentar a sorte nas águas espumosas. Conseguiram progredir 16 quilômetros em meio dia, o melhor desempenho até então, mas não sem escapar por pouco de um desastre: a certa altura, a pesada canoa nova, com Roosevelt a bordo, foi sugada por um redemoinho e começou a fazer água tão rapidamente que o dr. Cajazeira e Cherrie pularam para aliviar a carga e impedi-la de submergir. Com grande esforço, os barqueiros conseguiram endireitá-la, poupando os suprimentos e salvando as vidas.
Roosevelt, receando a morte dos homens por inanição, achou que era uma aposta que valia a pena. “Dos dois perigos”, escreveu ele, “pareceu necessário arriscar a descida das corredeiras.” Mas no dia seguinte a expedição foi atingida pelo que ele chamou de “um grave infortúnio”, beirando o desastre. Quando as duas primeiras canoas dobraram uma curva no início da tarde, o rio subitamente se alargou e ficou turbulento, dividindo-se em duas corredeiras separadas por uma ilhota central.
Rondon, imediatamente antevendo problemas e pressentindo um novo trecho por terra firme, ordenou que sua canoa atracasse na margem e gritou para Kermit [Roosevelt, filho do ex-presidente americano] fazer o mesmo. No entanto, com o barulho da água, Kermit não escutou ou resolveu ignorar a ordem. Os vários relatos feitos após o ocorrido são divergentes e contraditórios e de fato é impossível hoje, separados por um século, saber qual está correto, se é que um deles está. Seja lá o que aconteceu, acarretou igual resultado: a canoa da dianteira começou a arremeter velozmente na direção da ilha.
Mas Kermit e seus dois barqueiros, João e Simplício, evitaram encalhar. Haviam avançado cerca de 12 metros quando a canoa, aparentemente sugada por um poderoso turbilhão, girou e foi atirada de lado contra as águas revoltas. Descendo a corredeira, eles lutaram com os remos para forçar a canoa a ficar de frente, mas ela começou a afundar. A canoa chegou ainda flutuando ao fim da corredeira e os homens remaram com vigor redobrado para tentar chegar em segurança à margem. Estavam quase lá quando foram pegos por outro turbilhão, que arrastou a embarcação de volta à correnteza no meio do rio e a virou.
Agora os três homens, debatendo-se nas águas encrespadas, travavam uma batalha pela própria vida. João agarrou a sirga amarrada à proa da canoa e começou a nadar para a margem, esperando se salvar junto com os suprimentos, mas não conseguiu segurá-la. Simplício desapareceu sob a superfície. E Kermit, ainda agarrado ao rifle Winchester, de algum modo deu um jeito de subir na “quilha” da canoa emborcada e seguiu assim, qual um peão de boiadeiro, por uma segunda corredeira antes de ser atirado na água e perder a arma. Desesperado e exausto, suas roupas encharcadas puxando-o para baixo, ele conseguiu nadar em direção à margem; cansado demais para rastejar de volta à segurança da terra firme, tudo que pôde fazer foi segurar em um galho até recobrar o fôlego e as forças.
Kermit já estava de volta à ribanceira e caminhando rio acima, na direção do restante da expedição, quando Rondon e Lira o encontraram na trilha. “Então, magnífico banho! Não foi?”, foram as primeiras palavras de Rondon para o jovem Roosevelt. Não se sabe se o tom de Rondon foi sarcástico, reprovando o que no seu entender fora uma negligência juvenil de Kermit, ou se era apenas um gracejo solidário pelo alívio de ver o filho de seu convidado ilustre são e salvo. Mas e quanto a João e Simplício? Kermit disse acreditar que ambos haviam nadado para a outra margem do rio, então saiu à procura dos dois com Rondon e Lyra.
Infelizmente, Kermit tinha razão apenas em parte. João apareceu não muito depois, tendo cruzado o rio a nado desde a outra margem. Mas não se via sinal de Simplício —nem se veria. Além disso, a canoa da dianteira sumira, ou estraçalhada pela corredeira ou afundada no leito do rio, levando os suprimentos embora.
Devastado, Kermit saiu à procura de Simplício acompanhado apenas por seu cão, Trigueiro, que também fora arremessado na corredeira e conseguira escapar incólume. Kermit caminhou rio abaixo pela trilha por vários quilômetros, mas não encontrou nada além de um remo e uma única lata de comida, que resgatou voltando a mergulhar e nadando até o meio do rio. “Infelizmente, chegou o momento em que nos era impossível continuarmos a acalentar as nossas ilusões”, recordaria Rondon em uma conferência no ano seguinte. “Simplício tinha se afogado!”.
A morte de Simplício lançou uma nuvem sombria sobre os demais ajudantes, supersticiosos e agora influenciados pelo que viam como um sinal de mau agouro. Uma nova canoa de tronco foi confeccionada, embora isso tenha exigido esforço extra porque diversos enxós também haviam se perdido no rio após o acidente. E a expedição não perdera apenas um homem, mas também dez dias de provisões, um prejuízo irreparável. Essa última notícia deixou todo mundo preocupado. “A perda de uma vida humana é sempre uma tragédia”, escreveria mais tarde Cherrie. “Mas a perda da canoa e de tudo o que continha foi uma tragédia ainda maior para os membros remanescentes de nosso grupo.”
Em seu diário, Kermit foi extraordinariamente seco sobre a morte de seu barqueiro, escrevendo apenas “Simplício se afogou”. De sua parte, Roosevelt retratou o acidente em seu livro como simples obra do destino, como um exemplo de o homem sendo sobrepujado pelas forças da natureza. Mas no inquérito que Rondon ordenou discretamente, documento mantido até hoje em um arquivo do governo brasileiro, o barqueiro João conta uma história diferente, implicando Kermit.
Segundo João, Kermit ouvira a ordem de Rondon para parar, mas resolveu se aproximar da ilha e ver se era possível vencer a corredeira do lado direito. Concluindo que sim, ordenou que os barqueiros fossem em frente. Quando eles protestaram, dizendo que era perigoso demais, ele simplesmente repetiu a ordem, e João e Simplício, homens humildes, acharam que não havia escolha senão obedecer ao filho do ex-presidente americano. Simplício, o mais jovem dos exploradores, pagou o preço pelo que, no entender dos brasileiros, foi um erro de avaliação.
Sem um corpo para enterrar, Rondon ordenou que uma cruz simples com os dizeres “Nesta cachoeira faleceu o pobre Simplício” fosse erguida na manhã seguinte às margens da corredeira, pouco antes que os 21 exploradores remanescentes retomassem a jornada. Ele também batizou a cachoeira em homenagem a Simplício e ela continua com esse nome até hoje nos mapas brasileiros.
Em todos os inúmeros relatos da Expedição Científica Roosevelt-Rondon ao longo do século, sejam brasileiros ou americanos, Simplício é tratado apenas pelo primeiro nome ou, quando muito, referido apenas como o “desditoso Simplício” ou “pobre Simplício”, tendo sua identidade perdida. Mas com um escrutínio cuidadoso dos documentos deixados por Rondon, e numa de suas primeiras ordens do dia emitidas durante a expedição, encontramos o nome do homem completo: Antônio Simplício da Silva. Que a justiça seja feita.
Larry Rohter, jornalista nascido em Chicago, foi correspondente no Brasil da revista Newsweek, na época da ditadura militar, e do jornal The New York Times, entre 1998 e 2008.
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