"Aquilo que vivemos não está no mundo, está na maneira como olhamos para ele". É o que nos diz o romancista português Antônio Alçada Baptista (1927-2008), autor de uma vasta obra. Tudo depende, então, dos significados que cada um atribui àquilo que viveu. Quem concorda com essa definição é Gabriel Garcia Márquez, que acrescenta, no entanto, mais duas dimensões, além do olhar: a memória e a capacidade de narrar.
- A vida não é aquela que uma pessoa viveu, mas a que ela recorda e como recorda para contá-la - escreveu o escritor colombiano.
Pensando bem, parece que os dois têm razão. Nossa vida acaba sendo isso mesmo: o que olhamos, o que lembramos e o que narramos. No frigir dos ovos, é a isso que a vida se reduz. Se não lembramos, se não narramos, não existiu. Se lembramos e narramos de uma determinada forma, é essa forma que prevalece. "The rest is silence", nas últimas palavras de Hamlet, antes de morrer. Ou "o resto é farofa de abobrinha", na tradução do meu sobrinho Pão Molhado, que gosta de filosofar.
Lembrei do Antonio Alçada agora, nesta semana em que celebramos a presença dos índios no Brasil, por causa de uma história que ele me contou, em 1982, a mim e ao escritor amazonense Márcio Souza, quando juntos o visitamos, em Lisboa, no Instituto Português do Livro do qual ele era, então, presidente.
Alçada, falecido há três anos, era um grande contador de história, divertido e sedutor. Escrevia, ainda, crônicas saborosas no jornal O Dia, do qual foi redator-chefe. O fato que nos contou ocorreu em uma viagem de turismo de barco que ele fez pelo sul do Mar Egeu com um grupo de amigos portugueses.
Numa das ilhas gregas, acho que era Creta, mas não tenho certeza, ele estava de pé, diante das ruínas de um palácio, conversando sobre o passado glorioso da Grécia com seus amigos. Foi aí que passaram vários turistas japoneses, disciplinados e em fila, ostentando suas filmadoras e máquinas fotográficas. Um deles parou, ficou escutando, olhava com insistência, fixamente, não desgrudava os olhos de Alçada. Os olhares dos dois se cruzaram. O japonesinho se aproximou e, demonstrando que havia entendido a língua que falavam, perguntou:
- Desculpa. Vocês são portugueses?
Diante da resposta afirmativa, o japonesinho colocou o polegar e o indicador na boca, emitindo um longo e estridente assobio para seus amigos que haviam se distanciado. Quando todo mundo virou a cabeça, ele gritou em português, com um sotaque do interior de São Paulo:
- Ei, pessoal! Voltem aqui! Encontrei um grupo dos nossos antepassados.
O escritor contou que os portugueses explodiram em uma gargalhada generalizada, só em imaginar que eram avós daqueles "japoneses", de olhos puxados e pálpebras lisas. Logo depois, porém, os dois grupos se confraternizaram e a ficha caiu. Os "japoneses" eram todos brasileiros.
A ascendência reivindicada ali não se devia às características fenotípicas ou genéticas, mas à cultura, à língua. Aqueles filhos de imigrantes nipônicos que nasceram no Brasil acabaram assumindo plenamente a história do país, um passado que, embora não sendo deles, individualmente, nem de suas famílias, é da nação a qual eles pertencem.
Assumiram plenamente? Será? O que sobrou dessa história foi a pergunta: E se os brasileiros de origem japonesa tivessem encontrado um grupo guarani falando português, será que reivindicariam, igualmente, a descendência histórica? Provavelmente não, porque embora índios e africanos façam parte das matrizes formadoras da nacionalidade brasileira, nós fomos treinados, adestrados, amestrados, para nos identificarmos exclusivamente com a matriz europeia.
A exclusão da herança indígena na formação da brasilidade é um equívoco comumente reforçado pela escola, pelo livro didático e pela própria mídia. Não se reconhece que cada cultura tem uma lógica própria, como nos lembrava Antônio Alçada, que depois de nos contar a tentativa frustrada de transformar um pescador nativo de uma ilha do Pacífico em empresário de barco de pesca, citou o diálogo de Jean de Léry com um velho tupinambá do Rio de Janeiro, que não entendia porque franceses e portugueses vinham de tão longe buscar tanto pau-brasil.
- "Precisais de muito"? - perguntou o velho.
- "Sim, pois no nosso país existem negociantes que possuem mais panos, facas, tesouras, espelhos e outras mercadorias que podeis imaginar" - respondi.
- "Mas esse homem tão rico de que me falas não morre" - continuou o velho.
- "Sim" - disse eu.
- "E quando morrer para quem fica o que acumularam?" - insistiu.
- "Para seus filhos" - retruquei. O velho concluiu:
- "Agora vejo que vós outros sois grandes loucos, pois trabalhais tanto para amontoar riquezas para vossos filhos, Não será a terra que vos nutriu suficiente para alimentá-los também? Estamos certos de que depois de nossa morte, a terra que nos nutriu também nutrirá os filhos que amamos, por isso descansamos sem maiores cuidados".
A incapacidade de compreender a alteridade reafirmou a visão eurocêntrica e preconceituosa em vários momentos significativos de nossa história, como nas comemorações do Quarto Centenário do Descobrimento do Brasil, em 1900, quando no discurso de abertura, Paulo de Frontin disse com todas as letras que o Brasil nada tinha a ver com os índios.
- Os selvícolas não são nem podem ser considerados parte integrante da nossa nacionalidade; a esta cabe assimilá-los e, não o conseguindo, eliminá-los.
Depois disso, se reforçou ainda mais esse obscurantismo intelectual, que elimina o índio na representação que o Brasil faz de si mesmo. Esta imagem está baseada em outros preconceitos, como aquele que considera as culturas indígenas como atrasadas e primitivas, desconhecendo que os índios produziram e continuam produzindo saberes, ciências, arte refinada, literatura, poesia, música, religião.
Os colonizadores acreditaram nessa falácia, ignorando completamente a complexidade das culturas indígenas, o que foi internalizado pelos brasileiros que continuam se pautando em estereótipos e no senso-comum, sem levar em conta a contribuição dada no campo da antropologia.
Quando se aceita que os índios fazem parte de nossa história, se cultiva outro equívoco, achando que eles pertencem exclusivamente ao passado. É o índio de papel, dos arquivos e não o índio de carne e osso. Ora, os dados do Censo de 2010, divulgados no dia 19 de abril - dia do índio - pelo IBGE, mostram que em relação aos dois censos anteriores, a população indígena cresceu extraordinariamente, totalizando 817.630 indivíduos, que vivem em 4.480 municípios dos 5.565 existentes no Brasil.
Sobre esses equívocos é que estarei falando na próxima quinta-feira, na Academia Brasileira de Letras (ABL), no Rio, no Seminário Brasil, brasis, coordenado por Domício Proença Filho, numa mesa redonda intitulada "O índio no Brasil contemporâneo", com a doutora Graça Graúna, professora da Universidade de Pernambuco. Trata-se de uma programação da ABL, iniciada em 2006, com encontros mensais que discutem os mais variados temas. Desta vez, são os índios.
E o que tudo isso tem a ver com a Tia Suzana, Meu Amor? Ah, esse é o título de um romance do Antônio Alçada sobre o qual queria comentar, mas me dispersei em divagações e o espaço se esgotou. Ele fala de Deus, da morte, do suicídio, do corpo, da mulher, do provincianismo, dos preconceitos de uma sociedade conservadora. Mas fica para outra vez. Prometo.