Cuando la muerte me lleve / por sus caminos de sombra...
(Los Chalchaleros)
- Cómo se humanizan los animales!
Ouvi essa frase milhares de vezes, mas a primeira foi numa ensolarada manhã de abril. Lembro ter sido em abril porque o jornal brasileiro que forrava o piso da gaiola, que doña Aurélia limpava, exibia manchete sobre a Revolução dos Cravos em Portugal. Lá dentro, pisando uma foto de Grândola, vila morena, reinava todo empavonado “Itamar” - uma cacatua cujo penacho amarelo parecia com o penteado do ex-presidente da república. Com seu bico encurvado, levantou a crista, eriçou as penas e deu uma beliscada suave e amorosa na mão que lhe dava ração, água e asseio. Era uma forma de agradecimento. Foi aí que a dona das mãos, inspirada, criou a frase histórica:
- Cómo se humanizan los animales!
Ela pronunciava “humaniçam”, com cedilha, mas “Itamar”, por supuesto, entendia, pois aprendera espanhol por imersão. A frase era repetida cada vez que o pássaro fazia alguma gracinha – foram muitas, incontáveis vezes. Nesses momentos, ele encontrava formas de demonstrar que estava enamorado, apaixonado por aquelas mãos que adentravam seu território, trazendo água fresca, alimento, afeto, vida.
Todas as manhãs, durante anos, cumpriram religiosamente, impajaritablemente, o mesmo ritual, com trocas de assovios, cantos, carinhos, beliscos e afagos. Nunca o uso do impajaritable foi tão apropriado como aqui. O pássaro, inteligente, alegre e brincalhão, aprendeu até a abrir a porta da gaiola para espanto de todos, menos de doña Aurélia, que não cansava de repetir o mantra cheio de energia e sonoridade:
- Como se humanizan los animales!
De tanto ouvi-la, acabei lhe dando razão! Considerando que o ser humano é um namorador inveterado, que abre portas e janelas para se comunicar com o outro, se um animal faz tudo isso é porque adquiriu, indubitavelmente, a humanidade. Nisso acreditava piamente doña Aurélia, autora da frase, uma criação própria, original, dela mesma, não copiou de ninguém, tirou de suas observações sobre o comportamento dos animais – foram muitos – com os quais conviveu nos seus 95 anos de existência.
Frase memorável
Todo mundo na vida é autor de, pelo menos, uma frase de efeito, literária, filosófica ou histórica, que merece ser gravada em placa de bronze para a posteridade, incluindo pessoas anônimas, comuns, e não apenas escritores, políticos, filósofos. Shakespeare criou “to be or not to be, that is the question”. Antonio Machado nos deu “caminante no hay camino, se hace camino al andar”. Dom Pedro I, em tom solene, decidiu: “Diga ao povo que fico”. A frase memorável de doña Aurélia, uma pacata dona de casa, foi essa que humaniza inapelavelmente os animais.
Podia ter sido outra. Seria correto se ela se apropriasse, por exemplo, da já citada frase de D. Pedro I. Foi quando visitou a filha recém-casada. A filha, única. Ela, viúva. Chegou de mansinho assim como quem não quer nada, e foi ficando... ficando... ficando... e ficou... “para o bem de todos e felicidade geral da nação”. Ficou mais de quarenta anos, durante os quais moramos debaixo do mesmo teto, com curtos intervalos de tempo, em diferentes cidades e países – Lima, Paris, Manaus, Niterói e até umas férias em Imperia, na Liguria, berço de seu pai italiano. Convivemos numa relação de sogra e genro, o que - convenhamos - tem algo de heróico. Para ambos.
Por isso, não me surpreenderia se, em co-autoria com Shakespeare, ela manifestasse suas dúvidas: “To be or not to be mother-in-law?”. Essa é a questão. Te coloca no lugar dela, leitora! Quem, sendo mãe de filha única, aceitaria um genro hipponga, cabeludo, comunistóide, que veio sem o manual de instrução, que não tinha sequer passaporte e nem onde cair morto? Posto que o exilado está sozinho no país que o recebe, de qual buraco havia saído aquele “sem família”? A resistência inicial de doña Aurélia é, portanto, compreensível.
Tanta compreensão não me leva, no entanto, ao exagero de escrever aqui que ela foi minha segunda mãe, embora admita que só mãe é capaz de adivinhar o que a gente quer comer. E ela acertava. Sempre. Preparava um aji de gallina tão saboroso que nem o militante mais radical do PSOL botava defeito. Um velho comunista, Euclides, meu amigo de exílio, chegou a comer o delicioso cebiche feito por ela e esqueceu a revolução por algumas horas em que permaneceu jiboiando, em estado catatônico. “Se temos no Brasil peixe, limão, pimenta, milho, batata doce, cebola, porque não fomos nós os inventores do cebiche?” – lamentava-se ele, inconformado com o fato de o cebiche não ser brasileiro.
De qualquer forma, ainda que grato aos dotes culinários, me nego a usar aqui o termo ‘segunda mãe’, não porque seu proverbial ronco, à noite, não fosse um suave ronco materno – era um ronco de sogra - mas porque no presente contexto soaria como demagogia post-mortem. No entanto, se o usasse, não estaria de todo errado, seja lá o que isso signifique, para o bem e para o mal. Em contrapartida, não vou reforçar imagens estereotipadas, “folclóricas” e “clássicas”, dizendo que ela era uma jararaca peçonhenta, como qualquer sogra de piada, porque não era, embora os valores dela e os meus fossem diametralmente opostos.
Nem todos. Havia um momento em que rezávamos pela mesma cartilha, era quando eu me colocava de joelhos diante de um seco de cordero, de um cabrito en leche a la norteña, de um arroz chaufa, que ela preparava com condimentos e temperos trazidos de Lima. Seu tacu-tacu e sua sopa de feijão eram imbatíveis. A longa lista cobria diferentes regiões do Peru: causa limeña, ocopa arequipeña, papa a la huancayna, tamales de Supe, pepian de pavo de Huacho. Um dia, meu primo Djewry Power lacrimejou e subiu nas paredes, quando compartilhou comigo um rocoto relleno feito por ela. Foi aí que comprovou o ditado: "Não tem pescoço francês de peruano que aguente".
Língua de sogra
Modéstia à parte, este locutor que vos fala, hoje, é um expert na variadíssima culinária peruana, graças à Lela, como era chamada na família de quem herdou tal saber. Meu entusiasmo por seus quitutes era tão sincero que deixou minha mãe, dona Elisa, profundamente enciumada, por não entender que a língua do biculinário pode degustar duas gastronomias como a língua do bilíngue maneja dois idiomas: alternando o uso, mas mantendo sempre lealdade à língua de origem.
Lela me pegou, como a cacatua, pela boca. Confesso que foi uma rendição incondicional. Depus as armas. Bandeira branca, amor! Culinária não tem ideologia. Portanto, a César o que é de César. Mas, se ela não é mãe e tampouco jararaca, então é o quê?
Se eu fosse inglês, ela seria mãe apenas no plano legal: mother-in-law, mas sem direito a qualquer demonstração de afeto, como o alemão que, formal, também mete a mãe no meio - digo, no fim - quando chama sua sogra de schwiegermutter, um palavrão que assusta. Já o francês é cheio de rapapé, sua mãe pode até ser feia, mas sogra é sempre belle-mère, não sabemos se por diplomacia, hipocrisia ou fina ironia. Quem alopra mesmo é o bielo-russo, cuja língua não tem papas e, com franqueza assaz atroz, denomina sogra de storvo. No idioma de Lela, sogra não é mãe coisa nenhuma, é apenas suegra, mas o genro - o yerno – é, paradoxalmente, hijo político, ou seja, um filho sem mãe ou um filho da mãe.
Diante do exposto, ficamos assim combinados: por ser seu hijo político, eu acabei me tornando um filho da mãe, que não era ela, com quem tenho outra dívida, além da culinária. É que graças à sua presença, aprendi a conviver com bichos, a entender a linguagem deles. Foram muitos: cacatua, canário, papagaio, tartaruga, gato, cachorro, uma fauna variada que passou a viver dentro de casa, trazida por ela ou pela neta, a quem ensinou a amá-los.
Começou, para não assustar, com um canarinho – o Tadeu, que entoava um canto metralha e que era alimentado a pão-de-ló como se fosse um hijo político: alpiste, biscoitinho, alface, fruta fresca, pão molhado no leite e iguarias mil. Esse safadinho também se “humaniçou” rapidamente, porque é sabido que nos humanizamos através da degustação. Depois vieram outros, a casa vivia sempre lotada de várias espécies de animais de estimação, de quem passei a gostar e em quem encontrei parte de minha humanidade sequestrada. Todos eles ficaram carecas de ouvir:
- Cómo se humanizan los animales!
Anunciada várias vezes ao dia, com certo estardalhaço, a frase era saboreada por ela, sempre, como se fosse o “o” do borogodó. Cada vez que a repetia, parecia que estava descobrindo a pólvora ou fundando uma nova escola de filosofia. Os animais se humanizavam até nos ditados guardados nos fiapos de memória preservada pelos cuidados do geriatra Norberto Boechat e pelos desvelos de enfermeira da Paulina Ayma. “El último mono se ahoga” dizia à neta que demorava em sentar-se à mesa para almoçar ou “Estás buscando tres pies al gato, sabiendo que tiene cuatro”, usado para quem discutia sem argumento.
Na relação da humanidade com os bichos, os termos podiam, porém, ser invertidos. Quando víamos telejornal em família e apareciam imagens de Pinochet, Garrastazu, Idi Amin, Fujimori, Bush - tanto o Bushão como o Bushinho - ou outro assassino, eu glosava:
- Cómo se brutalizan los hombres!
De todos eles, só o mais sanguinário – o Bushinho – vivia com um cachorro, um terrier escocês, de nome Barney, que tinha até espaço exclusivo no site da Casa Branca, mas não no coração de seu dono, a quem não conseguiu educar, ao contrário de doña Aurélia que a seu modo percebeu nessa oposição de humanos x não-humanos uma canoa furada. Talvez tenha se ido sem saber que, na realidade, foi ela que se deixou humanizar pelos animais. Foram os bichos que nos humanizaram, contribuindo para tornar mais afetuosas as relações historicamente tensas entre sogra e genro.
A gente pensava que ela era imortal, uma Niemeyer longeva, embora já não arquitetasse mais nada ultimamente depois que sua razão se aposentou. Ainda criança chorou a morte prematura da mãe, depois do pai, do marido, de sobrinhos. Primogênita, enterrou duas irmãs mais novas, o irmão, também mais novo, e um filho-enteado, dele sim, ela foi a segunda mãe, devido à orfandade em que cedo ficou. Além disso, enterrou cacatua, canário, vários papagaios, duas tartarugas e uma cambada de cachorros. Enterrou minha mãe e TODAS as sogras e sogros de minhas nove irmãs e de meus dois irmãos. Era a ultima sogra da família.
Aurélia Magdalena Lagorio Viuda de Alfaro (1918-2013), a Lela, partiu aos 95 anos, brigando com o alemão Alzheimer, depois de tourear um câncer. Levou com ela lembranças de uma longínqua infância: o óleo de fígado de bacalhau que era obrigada a ingerir cedinho, em jejum, antes de dar um mergulho no mar frio do Pacífico, os cachorros “humaniçados” que fizeram parte de sua matilha amorosa e as imagens em branco-e-preto da farmácia do seu pai cheia de histórias dos personagens que por lá passaram.
Talvez tenha relutado em dizer adeus, porque não queria deixar o que deixou: uma herança única e singular. Deixou uma única filha, uma única neta, uma única bisneta, um único genro, um gato e um cachorro. E uma única frase. De plural, só os sobrinhos espalhados pelo Brasil, Peru, Argentina, Venezuela, Colômbia, Espanha, Itália, Bélgica, Suíça, Canadá e Estados Unidos, todos eles devidamente “humaniçados”.
Quando ela partiu de casa, nessa quarta-feira calorenta de janeiro, León, o gato, que dormia na sua cama, enrolado a seus pés, acusou a ausência, indagando por ela, insone, arregalando seus olhos verdes e desorbitados de Nonato. E Patife, o cachorro, ficou choramingando pelos cantos. Efetivamente, é impressionante “cómo se humanizan los animales”. Ah, os genros também! Eu acho.
Versión en español Taquiprati - Diário do Amazonas
José R. Bessa Freire – 00/01/2012
DOÑA AURELIA, LA ÚLTIMA SUEGRA
Cuando la muerte me lleve / por sus caminos de sombra:
(Los Chalchaleros)
- Cómo se humanizan los animales!
Oí esa frase miles de veces, pero la primera fue en una clara mañana de abril. Recuerdo que fue en abril porque el diario brasileño que forraba el piso de la jaula que doña Aurelia limpiaba, exhibía titulares sobre la Revolución de los Claveles en Portugal. Allí adentro, pisando una foto de Grandola, vila morena, reinaba todo empavonado “Itamar” - una cacatúa cuyo penacho amarillo parecía el peinado del ex-presidente de la república de Brasil. Con su pico curvo, levantó la cresta, erizó las plumas y le dio un picotón suave y amoroso en la mano que le daba ración, agua y limpieza. Era una forma de agradecimiento. Fue ahí que la dueña de las manos, inspirada, creó la frase histórica:
- Cómo se humanizan los animales!
Pronunciaba “humanizan”, seseando, pero “Itamar”, por supuesto, entendía, pues había aprendido español por inmersión. La frase era repetida cada vez que él hacía alguna gracia – fueron muchas, incontables veces. En esos momentos, encontraba formas de demonstrar que estaba enamorado, apasionado por aquellas manos que entraban en su territorio, llevando agua fresca, alimento, afecto, vida.
Todas las mañanas, durante años, cumplieron religiosamente, impajaritablemente, el mismo ritual, con intercambio de silbidos, cantos, cariños, picotones y caricias. Nunca el uso de impajaritable fue tan apropiado. El pájaro, inteligente, alegre y juguetón, aprendió a abrir la puerta de la jaula para asombro de todos, menos de doña Aurelia, que no se cansaba de repetir el ‘mantra’ cargado de energía y sonoridad:
- Como se humanizan los animales!
De tanto oírla, acabé dándole razón! Considerando que el ser humano es un enamorado inveterado, un abridor de puertas y ventanas, capaz de comunicarse con el otro, si un animal es capaz de hacer todo esto es porque adquirió, indudablemente, la humanidad. Por lo menos en eso creía piamente doña Aurelia, autora de la frase, una creación propia, original, no la copió de nadie, la obtuvo de sus observaciones sobre el comportamiento de los animales – fueron muchos – con los cuales convivió en sus 95 años de existencia.
Frase memorable
Todo el mundo en la vida es autor de por lo menos una frase de efecto, literaria, filosófica o histórica, que merece ser grabada en placa de bronce para la posteridad. Pero no es un privilegio exclusivo de escritores, políticos, filósofos. Shakespeare creó “to be or not to be, that is the question”. Antonio Machado nos dio “caminante no hay camino, se hace camino al andar”. Don Pedro I, emperador portugués de Brasil, cuando lo llamaron a volver a Portugal, decidió en tono solemne: “Diga al pueblo que me quedo”. La frase memorable de doña Aurelia, una ama de casa, fue esa que humaniza inapelablemente los animales.
Podría ser otra, inclusive la citada de D. Pedro I, por ejemplo, muy apropiada a la primera visita que ella, viuda, le hizo a su única hija, recién-casada. Llegó despacito y se fue quedando... quedando... quedando... y se quedó “para el bien de todos y felicidad general de la nación”. Se quedó más de cuarenta años, durante los cuales vivimos bajo el mismo techo en diferentes ciudades y países – Lima, Manaus, Paris, Niteroi, unas vacaciones en Imperia, en la Liguria, cuna de su padre italiano. Convivimos en una relación de suegra y yerno, que tiene algo de heroico. Para ambos.
Por eso, no me sorprendería si, en coautoría con Shakespeare, manifestase sus dudas, declamando: “To be or not to be mother-in-law?”. Esa es la cuestión. Te coloca en el lugar de ella, lectora! Quien, siendo madre de hija única, aceptaría de buen grado un yerno hippie, pelucón, comunistón, que ni siquiera tenía pasaporte ni donde caer muerto? Considerando que el exilado está solo en el país que lo recibe; de que techo había caído ese “sin familia”? La resistencia inicial de doña Aurelia es por lo tanto comprensible.
Tanta comprensión no me lleva a decir aquí que fue mi segunda madre, aunque admita que solo una madre sea capaz de adivinar lo que uno quiere comer. Y ella acertaba. Siempre. Preparaba un ají de gallina tan sabroso que ningún militante radical colocaría defecto. Un viejo comunista, Euclides, mi amigo de exilio, llegó a comer el delicioso cebiche preparado por ella y se olvidó de la revolución por algunas horas en que permaneció saboreando, en estado catatónico. “Si tenemos en Brasil pescado, limón, ají, maíz, camote, cebolla, porque no fuimos nosotros los inventores del cebiche?” – se lamentaba, insatisfecho por el hecho de que esta maravilla no sea brasileña.
De cualquier forma, aunque grato por los dotes culinarios, me niego a usar aquí el término ‘segunda madre’, no porque su proverbial ronquido, de noche, fuese de suegra y no de madre, sino porque en el presente contexto sonaría como demagogia post-mortem. Sin embargo, si lo usase, no estaría completamente equivocado cualquiera que sea su significado. Por otro lado, no puedo reforzar imágenes estereotipadas, “folclóricas” y “clásicas”, diciendo que era una serpiente venenosa, como la suegra de los chistes, porque no le corresponde, aunque los valores que profesábamos eran diametralmente opuestos.
Pero no siempre. Había un momento en que rezábamos la misma oración, era cuando yo me arrodillaba ante un seco de cordero, un cabrito en leche a la norteña, un arroz chaufa, que preparaba con condimentos y aderezos que venían de Lima. Su tacu-tacu y su sopa de frejoles eran antológicos. La larga lista cubría diferentes regiones del Perú: causa limeña, ocopa arequipeña, papa a la huancaína, tamales de Supe, pepián de pavo a la huachana. Un día, mi primo Djewry Power lagrimeó y subió por las paredes, cuando compartió conmigo un rocoto relleno hecho por ella.
Lengua de suegra
Modestia aparte, este locutor que les habla, hoy por hoy, es un verdadero expert en la variadísima culinaria peruana. Gracias a Lela, como la llamaban en familia, de quien heredó ese saber. Mi entusiasmo por sus platos era tan sincero, que despertó en doña Elisa, mi madre, una chispa de celos. Pero al César lo que es del César. Era irreversible, acabó agarrándome, como a la cacatúa, por la boca. Confieso que fue una rendición incondicional. Entregué las armas. Bandera blanca. La culinaria no tiene ideología. Entonces, si no es madre ni serpiente, ¿qué es lo que es?
Si yo fuera inglés, seria madre, solamente en el plano legal: mother-in-law, pero sin derecho a cualquier demostración de afecto, así como el alemán que menta a la madre cuando llama a la suegra schwiegermutter, que parece una palabrota asustadora. En cambio el francés es lleno de delicadezas - la madre puede inclusive ser fea - pero suegra es siempre belle-mère, no sabemos si por diplomacia, por hipocresía o por fina ironía. Ya el bielo-ruso es más radical, de una franqueza atroz, en esa lengua suegra es storvo. En el idioma de doña Aurelia, suegra no tiene nada de madre, es simplemente suegra, pero yerno es yerno e hijo político, o sea, un hijo sin madre.
Ante lo expuesto, combinamos lo siguiente: ella no era mi madre, pero yo era su hijo político, con quien tengo otra deuda además de la culinaria. Es que gracias a su presencia, aprendí a convivir con animales, a entender su lenguaje. Fueron muchos: cacatúa, canario, papagayo, tortuga, gato, perro, una fauna variada que pasó a vivir dentro de casa, llevados por ella o por la nieta, a quien le enseñó a amarlos.
Para no asustar, comenzó con un canario - Tadeo, que entonaba un canto metralla y que era alimentado con lo mejor, como si fuese un yerno, digo, un hijo: alpiste, galletitas, lechuga, fruta fresca, pan mojado en leche y mil golosinas. Ese individuo también se “humanizó” rápidamente. Después vinieron otros, la casa vivía siempre llena de varias especies de animales de estimación, de quienes pasé a gustar y en quien encontré parte de mi humanidad secuestrada. Todos ellos se cansaron de oír:
- Cómo se humanizan los animales!
Cada vez que saboreaba la frase repitiéndola, parecía que estaba descubriendo la pólvora o fundando una nueva escuela de filosofía. Los animales se humanizaban hasta en los refranes, que fue lo que le sobró de la memoria cuando el Alzheimer estaba avanzado. “El último mono se ahoga” decía frente a la demora de la nieta para sentarse a la mesa para almorzar o “Estás buscando tres pies al gato, sabiendo que tiene cuatro”, usado para quien discutía sin razón. Eran los hilos finos de la memória preservada por los cuidados del geriatra Norberto Boechat y el cariño de enfermera de Paulina Ayma.
Cuando asistíamos telediario en familia y aparecían imágenes de Pinochet, Garrastazu, Idi Amin, Fujimori, Bush, tanto Bushão padre como Bushinho hijo, u otro asesino de turno, yo invertía los términos y glosaba:
- Cómo se brutalizan los hombres!
Tal vez doña Aurelia haya partido sin saber que fue ella que se dejó humanizar por los animales, fueron ellos que nos humanizaron, contribuyendo para volver más afectuosas las relaciones históricamente tensas entre suegra y yerno.
Llegamos a pensar que era inmortal, una Niemeyer longeva, aunque ya no arquitectaba nada últimamente. Cuando estaba en la activa, lloró la muerte de su padre, del marido, de un hermano, de un sobrino que para ella era especial y de una hermana. En los últimos tiempos, ya jubilada de la razón, la de la hermana menor y de un entenado que quiso como a un hijo, para quienes, sí fue una verdadera segunda madre, debido a una orfandad temprana. Enterró la cacatúa, el canario, varios papagayos, dos tortugas y tres perros. Enterró a mi madre y todas las suegras y suegros de mis nueve hermanas y de mis dos hermanos. Era la última suegra de la familia.
Aurelia Magdalena Lagorio Viuda de Alfaro (1918-2013) partió a los 95 anos, luchando con el alemán Alzheimer, después de torear un cáncer. Lleva con ella los recuerdos de infancia, del aceite de hígado de bacalao que era obligada a tomar en ayunas, antes de ir a la playa, jugueteando con Tiber, Po y tantos otros perros que hacen parte de su manada amorosa. Las historias de juventud en los paseos bucólicos a la chacra de los Bisso en Mazo, conservadas en bellísimas fotos que guardó hasta cuando sus ojos no veían más, así como el aroma de la guinda huachana. Lleva también imágenes en blanco y negro de la farmacia de su padre, llena de historias de personajes que pasaron por allí. Memorias que quedaron más nítidas y se volvieron presente en los últimos tiempos.
Doña Aurelia dejó una frase, una hija, una nieta, una bisnieta, un yerno, un gato, un perro. La tia Lela deja una imagen protectora para muchos sobrinos, sobrinos nietos, ahijados y amistades muy queridas de toda la vida en algunos lugares del mundo, en Brasil, Perú, Argentina, Venezuela, España, Bélgica, Italia, Suiza, Canadá, Estados Unidos, todos debidamente “humanizados”.
León, el gato que dormía en su cama, acurrucado a sus pies, sintió su ausencia, abriendo de par en par sus hermosos ojos verdes, preguntando por ella. Y Patife, el perro, se puso a lloriquear por los rincones. Efectivamente, es impresionante “cómo se humanizan los animales”. Y... los yernos también! Creo yo.