Num lugar da Paulicéia Desvairada, cujo nome não quero lembrar, vivia há muito tempo um fidalgo, que ficou conhecido como o Cavaleiro da Triste Figura. Beirava os 80 anos. Era de compleição dura, seco de carnes, enxuto de rosto, nariz adunco, com aparência física do personagem do filme russo de Kozintsev. Era o próprio conde de Rachimbal.
Na sua juventude, esse cristão novo entregou-se à leitura de livros de filosofia e de economia. Inconformado com a existência, de um lado, de donos de fábricas, de terras e de bancos e, de outro, de proletários destituídos de bens, em situação de extrema miséria, possuidores apenas de sua força de trabalho, o nosso cavaleiro quis saber por que uns poucos têm tanta terra, tanto dinheiro, e muitos não têm onde cair morto, onde cultivar uma roça. A propriedade privada era mesmo um roubo?
Foi procurar nos livros a resposta sobre as injustiças do mundo. Começou com os dois tomos da Filosofia da Miséria de Proudhon e continuou com a Miséria da Filosofia de Karl Marx, acompanhando a polêmica sobre o que é o lucro e o que é o salário. Na Contribuição para a crítica da Economia Política descobriu a contradição entre as forças produtivas materiais da sociedade e as relações sociais de produção.
Ampliou suas leituras, varando dia e noite sem dormir. Compreendeu o que era o lucro no sistema capitalista, quando devorou os três tomos de O Capital onde aprendeu o conceito de ‘mais-valia’, depois de ruminar – já que ninguém é de ferro – o manual didático da chilena Marta Hanecker – O Capital: conceitos fundamentais – e até mesmo o curso dado aos operários belgas pelo filósofo húngaro-francês, Georges Politzer, em cujo livro - Princípios Elementares de Filosofia - encontrou mastigadas e vulgarizadas as leis do materialismo dialético.
Daí decidiu que não era suficiente compreender o mundo, era necessário mudar o mundo. Como? Leu no Manifesto Comunista que a história social da humanidade é a história da luta de classes. Sonhou com o socialismo e com uma sociedade sem classes folheando as páginas da Crítica ao Programa de Gotha. De tanto se empanturrar de literatura marxista, esse fidalgo paulista acreditou piamente na revolução proletária.
Don Plinio Del Tieté
Certo de que a classe operária tinha condições de emancipar toda a sociedade, o nosso cavaleiro não quis esperar mais tempo para se tornar, ele próprio, um revolucionário, um cavaleiro andante. Montou seu cavalo Psol, fraco e esquálido, e fugiu de casa em busca de aventuras, com o objetivo de endireitar o que estava torto, corrigir os abusos, praticar a justiça. Pegou uma armadura enferrujada de seu bisavô, fez uma viseira de papelão, armou-se com uma lança e se autointitulou Don Plínio Del Tieté.
Muita gente achou que o excesso de leituras havia deixado seu miolo mole, fazendo com que perdesse o juízo. Foi visto como louco. Ninguém aceitava que os ímpetos e os sonhos da juventude pudessem habitar aquela carcaça envelhecida pelo tempo. Confundido com um Enéas de esquerda – meu nome é Plínio – ele, no seu cavalo, tololoc, tololoc, saiu pra luta, tentando resgatar a esperança no horizonte socialista, com alucinações, como se estivesse vivendo ainda no século XIX, quando o fantasma do comunismo percorria a Europa.
Na sua primeira aventura em suas andanças pelo mundo, o nosso fidalgo encontra um menino, um camponês de nome Andrés, que amarrado numa árvore, era açoitado pelo seu patrão, um cruel latifundiário. Don Plínio propõe, então, a expropriação de todas as terras que utilizassem trabalho escravo e infantil e a redução da propriedade rural. “Ninguém pode ter terras com mais de mil hectares” – ele sentencia. Advoga também a redução da jornada de trabalho de 40 horas, sem redução salarial.
Mais adiante, depois de lutar contra o latifúndio e o agronegócio, o nosso cavaleiro visionário dá de cara com outros monstros – os moinhos de vento da agiotagem internacional e da globalização, com seus braços e seus tentáculos assustadores, contra quem ele arremete com toda sua fúria, consciente de que lutava contra gigantes. Quer destruí-los, deseja feri-los mortalmente, clamando por uma auditoria da dívida pública, a suspensão do pagamento dos juros e amortizações, além da taxação progressiva das grandes fortunas.
O nosso cavaleiro se decepciona com seu fiel escudeiro barbudo – Lulo Pança – a quem havia ajudado a se tornar governador de uma ilha, transformada pelo novo governante em um paraíso dos banqueiros e do mercado financeiro, com elevados juros que sangravam cotidianamente o orçamento da Insula. O cavaleiro critica a política assistencialista, que distribui bolsas - bolsa-disso, bolsa-daquilo - mas não toca nas relações sociais, nem no sistema de propriedade dos meios de produção, nem contribui para mobilizar e organizar a classe operária que vai redimir o mundo.
Na ânsia de combater as injustiças, ele segue enfrentando situações de perigo, mas é ridicularizado, surrado por pastores, pisoteado por ovelhas, cassado por militares, amarga o exílio no Chile, leva uma surra de repolhos testemunhada pelo duque de Ibope, que registra que suas façanhas são aprovadas e levadas a sério por apenas 1% dos habitantes da Insula. Muita gente ri dele, debocha desse cavaleiro, “que es valiente, pero tonto”.
A geral copulação
Por que um discurso que se apresenta como “uma opção de esquerda, socialista, popular, feminista, anti-racista e ecológica” não encontra eco na população da Insula? Por que ele é levado para o campo do burlesco, do grotesco, do pícaro? A ironia do destino é que se trata de um discurso generoso e combativo, que nos convida a sonhar e a acreditar na possibilidade de construir uma sociedade mais justa. Tudo que ele diz é ético e justo. Tem razão em tudo. Mas não cola.
Ele luta por saúde pública universal, integral e com controle social; educação gratuita e de qualidade para todos; meios de comunicação efetivamente democratizados; extirpação definitiva do racismo, da homofobia e do machismo. Quando é ridicularizado, quem está sendo achincalhado? É ele, individualmente, ou as ideias da construção de um mundo diferente, consideradas delirantes porque defendem a utopia?
Será que os habitantes da Insula perderam a capacidade de sonhar e de buscar o reino da utopia? Estão acovardados, fracos, envelhecidos? Trocaram as proezas pelas “nãoezas”? Perguntam-se: de que serve a revolução sem a geral copulação? Ou o que está afastando as pessoas é certa soberba do cavaleiro acuado, isolado, que acredita deter o monopólio da verdade e não consegue costurar alianças com outros setores da sociedade?
Devemos agradecer a Don Plinio Del Tieté, esse atrevido, lírico, fora de moda, por nos mostrar como somos ridículos quando colocamos em público o sonho de mudar o grande teatro do mundo? Por nos ajudar a ver, como num espelho, que somos “tantas vezes reles, tantas vezes vil, tantas vezes irrespondivelmente parasitas e indesculpavelmente sujos”? Ou, enfim, a triste figura, na realidade são os que ridicularizam o discurso dele, porque a utopia é mesmo ridícula no espelho pragmático da política?
No debate da próxima quinta-feira, 1º de outubro, ele entrará nos estúdios da Tv Globo montado em seu cavalo Psol, com sua lança em riste, como se estivesse vivendo no tempo da cavalaria. No final da história original, Don Quixote morre como um piedoso cristão, mas nos deixa de herança o direito de sonhar, apesar de nossas fraquezas. E Don Plinio Del Tieté, o que fará depois das eleições de 3 de outubro? E nós? Qual o legado que ele nos deixa?
P.S.1 - No roteiro original, Sancho Pança renuncia ao poder, mas não compactua com as práticas políticas dos duques - os banqueiros da época, de cujos aplausos desconfia. Agradecemos as aulas sobre Dom Quixote ministradas por MACAL.
P.S.2 em 08/06/2014 – Noticia veiculada há pouco informa que Plínio de Arruda Sampaio faleceu. Eu o conheci no Chile e vos asseguro que era um personagem encantador, um Don Quixote no sentido mais belo e positivo do termo: aquele que não renuncia aos sonhos e luta por eles.